Script = https://s1.trrsf.com/update-1734630909/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Referência negra, Lélia Gonzalez não é reconhecida como deveria no Brasil?

Durante anos, o nome de Lélia Gonzalez foi invisibilizado no espaço acadêmico brasileiro. No entanto, pesquisadoras e movimentos têm se debruçado na difusão das produções para manter o seu legado vivo para a população negra

24 jul 2023 - 17h41
Compartilhar
Exibir comentários

Era o ano de 2019 quando a ativista e intelectual estadunidense Angela Davis, no palco do Sesc Pinheiros, em São Paulo, lançou o seguinte questionamento: "Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo".

A partir daquele momento, Davis chamava atenção para a valorização de uma das mais importantes intelectuais negras do país: Lélia Gonzalez. Apesar do seu destaque, por muitos anos o nome da ativista, professora e antropóloga foi invisibilizado, especialmente no espaço acadêmico.

Pesquisadoras, intelectuais e movimentos sociais liderados por mulheres têm se debruçado na difusão das produções e conceitos cunhados por Lélia a partir dos anos 1970, como a "Amefricanidade".

Lélia Gonzalez e Angela Davis, 1984 | Foto: Arquivo Pessoal

Segundo Lélia, a "Amefricanidade" diz respeito às experiências sócio-políticas em comum vivenciadas pelos povos africanos e indígenas em oposição ao elemento colonialista e também trata sobre as influências dos povos originários na formação política e cultural em toda a América, ultrapassando as barreiras territoriais, ideológicas e linguísticas.

"Durante muito tempo a ciência e a mentalidade racista não reconheciam essas influências. Nossas culturas foram massacradas desde a perda das línguas às nossas práticas e a gente tem a resistência como elemento principal para manter algum desses elementos da cultura africana, da cultura indígena, ainda que de forma subalterna por conta da demonização dessas culturas", comenta a historiadora Melina de Lima, neta de Lélia Gonzalez.

Melina de Lima, historiadora, ativista e neta de Lélia Gonzalez | Foto: Arquivo Pessoal

São vários os fatores que explicam a tentativa de apagamento da produção de Lélia Gonzalez no meio acadêmico. Um dos motivos se dá pelo fato da intelectual iniciar as suas produções em um contexto em que a universidade não tinha interesses em debater questões relacionadas a gênero e raça, temas em que Lélia se tornou referência.

Além disso, as universidades ainda eram majoritariamente ocupadas por pessoas brancas, o que dificultava o debate crítico dentro desses espaços, como conta a professora Flávia Rios, pesquisadora do pensamento de Lélia Gonzalez há 20 anos.

"A universidade era marcada pela presença de intelectuais brancos muito voltados para a produção europeia e norte-americana e a Lélia Gonzalez era uma pensadora que estava preocupada com os pensadores africanos, negros brasileiros, feministas latino-americanas, autores do Caribe, ou seja, tudo aquilo que não estava na grande produção brasileira, que também cria esse obstáculo epistemológico por parte da própria universidade", explica.

O conceito de "interseccionalidade", cunhado em 1989 pela ativista e professora afro-americana Kimberlé Crenshaw, já era difundido a partir de outros termos por  Lélia Gonzalez no Brasil. Feminista negra e fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) e do Nzinga — Coletivo de Mulheres Negras, Lélia se tornou conhecida por provocar tensões importantes dentro dos movimentos no qual fazia parte, como a invisibilização das mulheres negras e indígenas nos discursos feministas e do machismo reproduzido pelos homens negros.

"Ela mostra que no feminismo também pode ter hierarquias, que no movimento negro também pode ter hierarquias e a contribuição para o momento atual é essa porque radicalizando esse pensamento a gente vê que os coletivos hoje tendem a incorporar muito mais as ideias interseccionais, de que há uma pluralidade, que não adianta ser antirracista e machista. O pensamento de Lélia ajuda a expandir a possibilidade das lutas emancipatórias plurais, não só em uma linha", pontua Flávia.

Flávia Rios, professora e pesquisadora do pensamento de Lélia Gonzalez. | Foto: Divulgação/GIRA

Vida política

Durante a sua trajetória, Lélia Gonzalez expandiu as suas lutas para o campo da política institucional. Participou da formação do Partido dos Trabalhadores (PT), integrou o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e contribuiu nas discussões para elaboração da Constituição de 1988.

Em 1981, se lançou como deputada federal pelo PT, mas não foi eleita - ficou como primeira suplente. Em 1986, a intelectual saiu como deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e também não se elegeu.

Na época, a mudança de partido por Lélia ocorreu após ela perceber a falta de engajamento do PT do Rio de Janeiro para lidar com a pauta racial. Em entrevista ao jornal "O Pasquim", em 1986, a intelectual comentou sobre a mudança. "O PDT no Rio possui um amplo respaldo popular, e dentro desse respaldo a questão racial é tratada com muito mais atenção. A razão fundamental foi essa, o próprio programa partidário. Diferentemente dos outros partidos, antes de entrar no programa propriamente dito ele declara suas prioridades, e veja que essas prioridades são a criança, o trabalhador, a mulher e o negro", declarou.

Para a deputada estadual de Minas Gerais, Macaé Evaristo (PT), a presença de Lélia foi fundamental para provocar uma transformação nas estruturas do Estado e na inclusão de grupos historicamente minorizados, como mulheres, população negra e movimento LGBTQIA+.

"Uma coisa bonita de poder viver nesse tempo é, por exemplo, ver o número de coletivos de jovens estudantes em diferentes instituições de ensino do país que se organizam em torno do pensamento de Lélia não só pesquisando e fazendo a sua carreira acadêmica mas também interferindo e tensionando o legislativo, o executivo, com a sua presença, com os seus corpos para pensar a política pública a partir do pensamento de Lélia", afirma.

Macaé avalia a importância que o legado de Lélia teve na defesa da democracia durante o governo de Jair Bolsonaro. "Na minha avaliação, esse recrudescimento que a gente viveu no país e essa rearticulação de forças conservadoras, patrimonialistas, também é uma reação à potência e força desse pensamento da Lélia e de outras pensadoras e como elas foram capazes de tensionar a estrutura de Estado em que a gente vive", finaliza.

Macaé Evaristo é deputada estadual pelo PT em Minas Gerais | Foto: Facebook/Macaé Evaristo

"Por um feminismo afro-latino-americano"

Lançado em outubro de 2020 e organizado pelas professoras e pesquisadoras Flavia Rios e Márcia Lima, o livro "Por um feminismo afro-latino-americano" reúne uma série de artigos, entrevistas, materiais de imprensa e livros escritos por Lélia Gonzalez desde o início das suas produções.

Elaborado com base nos 20 anos de pesquisa da professora Flávia Rios, a obra reflete a pluralidade na atuação de Lélia - que também passou pelos campos da psicanálise, filosofia e religião - e também apresenta textos que nunca tinham sido traduzidos de outras línguas para a língua portuguesa.

"Foi uma contribuição interessante porque não pega só os textos, mas também as entrevistas, materiais de imprensa e a gente teve o desafio de organizar cada tipo de material e também de encontrar alguns materiais mais perdidos. As pessoas têm lido, colocado nas suas bibliografias de cursos, movimentos sociais, têm muita pesquisa recente de pessoas de diferentes áreas da linguística, da psicanálise, da filosofia. Tem sido uma recepção muito boa", comenta Flávia Rios.

"Lélia Gonzalez na boca do povo"

No dia 1º de fevereiro deste ano, data em que completaria 88 anos, a ativista negra ganhou o Instituto Memorial Lélia Gonzalez (IMELG) em homenagem às suas contribuições para as discussões de gênero, raça e classe no país e como forma de defender a sua memória viva para a população negra brasileira. A ação é resultado de um trabalho de dois anos entre a família e voluntários no projeto "Lélia Gonzalez Vive".

Segundo Melina de Lima, neta de Lélia e diretora de Cultura e Educação do IMELG, o Instituto era uma vontade da avó que, quando já estava com a saúde fragilizada, pedia para que as suas produções fossem difundidas. "O legado que a gente quer é 'Lélia Gonzalez na boca do povo' porque ela é uma pessoa que faz a diferença e é extremamente atual. É como eu falo: eu nem queria que ela fosse atual, queria que a gente já tivesse superado todas essas mazelas do racismo", aponta a historiadora.

Os principais eixos de atuação do Instituto, organização social sem fins lucrativos, são: educação, comunicação e de acervo e pesquisa. Atualmente, o IMELG tem se debruçado em ações para submeter projetos educacionais, culturais e de tradução dos textos da intelectual para outros idiomas, como inglês, espanhol e francês. Além disso, também estão previstos projetos de documentários e um longa metragem, ainda sem data de lançamento.

"A gente está num momento em que Lélia Gonzalez já é referência. Para trás a gente não vai andar mais. Continuar promovendo a popularização do pensamento dela é uma missão da nossa família e a gente precisa que mais pessoas acessem Lélia Gonzalez", completa Melina de Lima.

O home office só existe graças a uma mulher negra chamada Marian Croak

Alma Preta
Compartilhar
Publicidade
Seu Terra












Publicidade