Saiba como foi o reencontro do desembargador com a mulher que manteve em condições de escravidão
Ministério Público do Trabalho diz que Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Gayotto provocaram um 'circo estapafúrdio', debocharam da equipe do acolhimento e não respeitaram decisão do STJ
O encontro entre o desembargador Jorge Luiz de Borba e da mulher dele, Ana Cristina Gayotto de Borba, com a empregada que são investigados de manter em condições de escravidão por mais de 40 anos foi um "circo estapafúrdio", de acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Acompanhados de dez advogados, uma escrevente cartorária, vários membros da família e empregados, eles teriam debochado da equipe de atendimento, desrespeitado os profissionais e a decisão judicial que autorizou a conversa, segundo o órgão.
Como mostrou o Estadão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou que Maria (nome fictício usado para proteger a identidade da vítima), que estava em uma instituição de acolhimento, se encontrasse com Borba e Ana Cristina e, se fosse da sua vontade, voltasse para a residência de onde foi resgatada pela Polícia Federal (PF) no começo de junho.
O caso foi para o Supremo Tribunal Federal (STF) e o ministro André Mendonça manteve a decisão. Tanto ele quanto o ministro Campbell Marques, do STJ, entenderam que Maria vivia "como se fosse da família" na casa do desembargador.
A decisão judicial que permitiu esse reencontro falava apenas no desembargador e na sua esposa - que são os dois investigados no caso. De acordo com o relatório do MPT, eles apareceram na instituição de acolhimento com dez advogados, uma funcionária de um cartório (levada para confeccionar uma ata notarial do episódio) e alguns membros da família, totalizando cerca de 20 pessoas. Borba e Ana Cristina levaram uma mala de viagem e um álbum de fotos "confeccionado para o momento também como estratégia de manipulação emocional", diz o relatório.
Retorno 'induzido'
Esse encontro ocorreu na quarta-feira passada, 6, quando Maria voltou para a casa do desembargador. O relatório do MPT diz que, na véspera do dia marcado, 5 de setembro, os investigados tentaram "forçar uma visita à resgatada" e a instituição de acolhimento precisou chamar a polícia.
Quando o desembargador chegou à instituição com várias pessoas, o Ministério Público do Trabalho interveio e pediu que os membros da família e parte do advogados ficassem em uma sala separada, cujas janelas davam de frente para o gramado dos fundos da instituição de acolhimento, onde Maria estava.
O MPT diz que, durante o encontro, as pessoas da sala abriram as janelas e começaram a interagir com Maria, falando com ela e estendendo os braços para abraçá-la. O relatório narra que a sala foi trancada, mas depois "grande parte das pessoas e advogados instalados na sala de reunião invadiu o gramado". Eles cercaram a vítima e começaram a abraçá-la.
Além de Borba e Ana Cristina, no gramado estava também um neto dos investigados, que Maria conhece desde criança. O relatório fala que toda a postura do desembargador e da esposa foi "uma estratégia pensada de manipulação e controle psicológicos, típicos de relacionamentos abusivos" e que o retorno da mulher foi "induzido".
"A saída de Maria do Centro, por seu turno, foi induzida pelo investigado, que levantou da cadeira, orientou-a, com tapinhas na perna, a também levantar, segurou-a pelo braço e a conduziu para fora, onde foi, logo, cercada e abordada por diversas pessoas por ele trazidas", diz o MPT.
O encontro foi acompanhado de psicólogas e trabalhadoras da instituição de acolhimento, que relataram às autoridades que foram sucessivamente interrompidas pelos investigados, impedindo que elas questionassem Maria sobre o desejo de retorno à casa de onde foi resgatada.
"A própria psicóloga surda, antes de ceder às inúmeras pressões de todos os advogados e, posteriormente, da própria gestora do Centro, que a acuaram e a interromperam desrespeitosa e insistentemente, respondeu, por diversas vezes, como visto acima, que Maria não havia dado uma resposta clara e estava em uma situação tensa e angustiante."
A reportagem procurou o desembargador e a mulher dele. Eles disseram que não comentarão sobre o caso por causa do segredo de Justiça das investigações.
Próximos passos
Desde o dia 6 de setembro, Maria está na casa de Jorge Luiz de Borba e Ana Cristina Gayotto de Borba. Eles respondem a uma investigação feita pelo Ministério Público do Trabalho e sob a jurisdição do STJ - foro competente para desembargadores dos Tribunais de Justiça. Borba responde a uma reclamação disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por causa do episódio. Não há processo judicial contra eles. O caso ainda está em fase de investigação.
A Defensoria Pública da União foi ao STF para tentar impedir o reencontro de Maria com a família. O ministro do STJ que autorizou o gesto, Campbell Marques, prestou informações ao Supremo justificando a decisão e mantendo-a. O caso vai ser julgado pela Segunda Turma da Corte - da qual fazem parte Edson Fachin, Gilmar Mendes, Nunes Marques e Dias Toffoli. Eles podem tanto manter a decisão de Mendonça quanto reformá-la.
O argumento usado pela Defensoria é de que Maria precisaria passar por um protocolo de ressocialização antes de poder decidir se quer ou não voltar para a casa do desembargador. Surda, ela não sabe usar a língua de sinais e até 2019 não tinha nenhum documento além da certidão de nascimento. Na instituição em que estava, a empregada estava recebendo apoio profissional com o objetivo construir sua independência.
Os depoimentos apresentados na investigação contêm relatos de que Maria não recebia atendimento médico, sofria agressões verbais, puxões de cabelo e vivia em condições degradantes. Ex-funcionários afirmam que ela morava em um quarto mofado nos fundos da casa e não tinha contato com parentes ou amigos próprios.
No curso das investigações, foram encontrados seis irmãos da empregada. Eles moram em São Paulo e acreditavam que a irmã estava morta. Havia um encontro agendado para o dia 22. Os irmãos disseram à polícia que têm interesse em viver com Maria.