“Ser homem trans é buscar pela sua vida todos os dias”, diz baiano vencedor do Mister Trans Internacional
Para Yuri Carvalho, título representa mais que reconhecimento pessoal, é também uma luta coletiva para tirar homens trans da invisibilidade
O baiano Yuri Carvalho, 38 anos, é o vencedor do último Mister Trans Internacional, concurso de moda e beleza que valoriza as transmasculinidades. Para o modelo, o título representa mais que um reconhecimento pessoal, é também uma luta coletiva: sair da invisibilidade onde homens trans são insistentemente colocados, sobretudo no nordeste do país.
“A importância de trazer esse título é mostrar para os meninos [trans de Salvador] que eles podem, sim, ocupar os espaços, participar de concursos, estar onde quiserem estar. Esse tipo de evento abre um leque de possibilidades. Não é só ganhar, é falar da nossa história e nossas vivências”, diz Yuri, em entrevista ao Terra NÓS.
O concurso ocorreu no início de junho no Centro Cultural da Diversidade (CDD) em São Paulo (SP). Morador do bairro Nordeste de Amaralina, um dos maiores complexos periféricos de Salvador, Yuri foi campeão do Mister Trans Bahia em 2020 e Mister Regional Nordeste em 2023. Agora, o soteropolitano poderá representar o Brasil em uma etapa mundial, ainda sem data definida.
O caminho para a coroação de Mister Trans Internacional, no entanto, foi um processo pouco glamouroso. Yuri tirava dinheiro do próprio bolso para custear viagem e roupas, deixou de comprar seus hormônios e teve crise de ansiedade. Esse ano, ele contou com o apoio de assessoras, que são suas amigas, e do Governo do Estado da Bahia.
Segundo Yuri, lutar tanto e, às vezes, sozinho, é cansativo. “Tem hora que cansa, sim. Mas, se eu cansar, se eu desistir de lutar, vou estar desistindo de mim também”, desabafa.
Ele já tem colocado em prática projetos voltados para a população trans. O modelo é fundador do primeiro time de futebol formado por homens trans em Salvador. O Fênix treina pelo menos 20 alunos. “O esporte também salva vidas. Então, enquanto presidente do Fênix, e hoje estando como suplente do Conselho Municipal, a minha luta também vai ser essa”, completa Yuri.
Durante conversa com a reportagem, Yuri se emocionou ao relatar casos de jovens trans que tentaram suicídio. “Um dos garotos que coloquei no time me disse: ‘Yuri, se você não me chamasse naquele dia, hoje eu não estaria mais aqui’. Por cinco minutos salvei a vida dele. Quando ele me falou isso, no dia do amistoso do Fênix, aquilo me tocou tanto que eu percebi que não poderia parar.”
Eu me emociono porque é muita luta. E só quem passa sabe expressar.
Yuri já passou por episódios de depressão e tentativa de suicício, por isso entende e se solidariza com esse lugar de dor. Os crimes de ódio no Brasil desencadeiam esse cenário. Em 2023, por exemplo, o Grupo Gay da Bahia (GGB) documentou a morte violenta de 257 pessoas LGBTQIA+ no país. Entre as 22 mortes registradas na Bahia, oito ocorreram em Salvador.
Outro sonho de Yuri é abrir uma casa de acolhimento na capital baiana, para vítimas de violências e jovens trans que são obrigados a saírem de casa.
“Nem que esteja com 50 anos, mas eu quero realizar esse sonho. Porque eu sinto essa necessidade aqui. Tem meninos de 15 anos que a mãe já colocou para fora de casa. Não tem para onde ir. Fico com o coração apertado”, narra.
Apoio da família
O que tem sido âncora para Yuri não desistir de si e dos seus sonhos é o apoio da família, retrato diferente de outros homens trans que ele conhece. A transfobia adoece, mata, e ter acolhimento em casa faz toda a diferença.
“Minha filha Maria Eduarda [de 17 anos] é a minha base. Graças a Deus eu tenho uma família, uma mãe, que me abraça, que me acolhe. Quando preciso chorar, eu tenho um colo. Isso me faz ter a sensibilidade de enxergar o outro”, diz o modelo.
Na época da gestação, antes do processo de transição de gênero, Yuri conta que não aceitava as mudanças de seu corpo. “Tive depressão pós-parto. Não aceitava a minha filha de jeito nenhum. Amamentava olhando para ela com raiva. Depois, com o tempo, eu comecei a perceber que aquele ser veio para mudar a minha vida.”
Aos 12 anos, Maria Eduarda soube que tinha um pai trans. "Durante muito tempo eu dizia ‘não, não vou fazer a humanização, ela não vai entender, vão fazer chacota dela na escola’", conta. A filha, por outro lado recebeu a notícia com carinho, sem nenhum preconceito. “Aquilo me deu energia para poder ser Yuri, para poder lutar pela minha vida.”
No momento que começou a minha transição, eu também me gestei.
Esse entendimento de aceitação é o que Yuri tenta levar para os meninos do Fênix, repassar o acolhimento que teve. “Hoje, eu consigo me libertar mais. Quando você tem o apoio da sua família, o preconceito lá fora fica um pouco mais leve.”
A vivência trans é uma luta diária e, para ele, requer afirmação por uma necessidade de sobrevivência. “Ser homem e trans não é só se harmonizar, fazer mastectomia, usar uma prótese, ter barba. É buscar pela vida todos os dias”, ressalta.