Somos NÓS: Ingrid Silva, a bailarina negra que pintava suas sapatilhas
Da zona norte do Rio até a companhia onde dança em Nova York, foram 11 anos até ela receber o primeiro par de sapatilhas no tom da sua pele
“Minha história começa em Benfica, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Eu fui nascida e criada ali. Vivi lá até os 18 anos.
Tenho lembranças maravilhosas. Brincava na rua, jogava futebol no meio dos meninos. Meus pais me deram um apoio fundamental nessa fase, e essa raiz eu carrego para todo lugar que eu vou.
Comecei a dançar aos oito anos, em um projeto social chamado Dançando para Não Dançar. Mas até os 18 eu nunca me vi como bailarina profissional, simplesmente porque não existia ninguém para quem eu pudesse olhar. Eu nunca tinha visto uma bailarina preta.
Até que um dia a Bethânia Gomes entrou em uma sala do projeto. Ela era a primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem e foi a visão dela que me fez ver, pela primeira vez, que uma mulher negra podia ocupar um lugar de destaque em uma companhia clássica. Ela foi a primeira pessoa que me falou “você tem potencial, você tem que mandar um vídeo para o Dance Theatre of Harlem”. E hoje eu danço e vivo nos Estados Unidos.
Até então, eu só tinha ouvido dos professores outros tipos de frases. “Você deveria fazer outra coisa” e “Seu corpo não dá para o balé” foram algumas delas. Essas frases reproduziam, além do racismo, uma cultura de frustração e sofrimento que pode ser muito forte na dança.
Então eu me mudei para Nova York aos 18 anos, para dançar no Dance Theatre of Harlem. Quando cheguei lá, o Arthur Mitchell, que era o fundador da companhia – e tinha sido o primeiro bailarino negro a dançar no New York City Ballet, uma companhia super tradicional – foi quem me falou que todo bailarino ali tinha que usar meia-calça e sapatilha no tom da própria pele, e não aquele padrão cor-de-rosa que vemos em todo lugar no balé clássico.
Ele tinha determinado isso já desde os anos 70, e quando eu cheguei e entrei em contato com isso, em 2018, aquilo explodiu minha cabeça. Era óbvio! Foi ali que eu entendi o significado da uniformização da pele do bailarino, que garante que você não descontinue a linha da silhueta.
Então, todos os bailarinos negros usavam sapatilhas e meia-calça no tom da própria pele. Mas conseguir essas sapatilhas eram outros quinhentos. Foi por isso que eu comecei a pintar minhas sapatilhas, porque nenhuma loja vendia sapatilhas no tom da pele negra.
Para pintar as sapatilhas eu usava base, essas bases de maquiagem. Cada potinho dava para uma sapatilha só, e era caro, uns 10 dólares por pote. Eu aplicava com esponja de maquiagem mesmo. E toda vez que ia dançar tinha que pensar nessa logística, de aplicar, esperar secar… Até que, em 2019, recebi minha primeira sapatilha no tom da minha pele. Uma marca fez e mandou para mim.
Quando eu abri a caixa, senti alívio. Finalmente eu não ia ter que ficar fazendo aquele processo longo, de preparo das minhas sapatilhas e tal; podia simplesmente calçá-las e dançar, como todo mundo. Mas logo senti também um pouco de descrença: como pode ter levado todo esse tempo para eu ter uma sapatilha da minha cor? Onze anos dançando. Pleno 2019, e era a primeira vez que eu vivia isso.
Eu finalmente me senti comum, como qualquer outra pessoa. E a partir dali, veio outro momento.
Eu compartilhava as coisas que eu estava vivendo nos Estados Unidos nas minhas redes sociais. Era um jeito de contar para as pessoas como estavam sendo minhas experiências, de falar não só da dança mas de tudo que eu estava descobrindo – estar em um espaço com tantas pessoas negras dançando balé clássico, por exemplo, entre outras experiências, foram coisas que me ajudaram muito no meu letramento racial.
Postei sobre as minhas sapatilhas novas e o post viralizou. Mas eu nunca pensei que um dia poderia ocupar também um lugar de influenciadora. E também de escritora: contei minha história em um livro chamado “A Sapatilha que Mudou meu Mundo” e em outro, infantil, chamado “A Bailarina que Pintava Suas Sapatilhas”, este último lançado em fevereiro pela editora Globo.
Espero um dia também ter uma marca de sapatilhas em tons de pele diversos, e tornar as sapatilhas acessíveis – ainda hoje, é preciso encomendar pares de um tom que não seja o rosa.
Afinal, o balé sempre foi uma peça essencial, revolucionária, na minha vida. A arte tem um poder de transformação, e foi isso que ela fez comigo”.