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"Sou sobrevivente de resquícios medievais", revela drag pioneira

Ikaro Kadoshi fala sobre preconceito, orgulho, agressão do avô e o sonho de ser a Hebe das drag queens

21 nov 2022 - 05h00
(atualizado às 10h22)
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O carinho e acolhimento da mãe foi proporcionalmente inverso ao do avô paterno
O carinho e acolhimento da mãe foi proporcionalmente inverso ao do avô paterno
Foto: Reprodução Instagram / Reprodução Instagram

Se você é uma daquelas pessoas que adora ficar zapeando pelos canais de tv por assinatura, pelas plataformas de streaming ou então por sites e redes sociais, inevitavelmente já se deparou com a elegante e disruptiva drag Ikaro Kadoshi. 

Nos últimos cinco anos, a paulista de São José dos Campos, cidade a 98 km da capital, apresentou o reality show "Drag Me As a Queen" no E!, participou de programas na CNN Brasil, do especial "Falas do Orgulho", da Rede Globo, além de ter alcançado o feito inédito de ser a primeira drag no mundo a comentar o Miss Universo, o Emmy e o Oscar, pelo canal TNT. No online, produz conteúdos para seus mais de 200 mil seguidores no Instagram e foi apresentadora da transmissão da Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de São Paulo pelo Terra. 

Para 2023, junta-se à Xuxa, sua "babá" na infância, na apresentação do reality show "Caravana de Drags" que rodou o Brasil em busca da "Drag Suprema", no Prime Vídeo, além de muitos outros planos. 

"Lembro até hoje, um dia estava com Alexia Twister lá em São José, onde a gente dividia um apartamento, e ela me perguntou quem eu seria se pudesse escolher, qualquer pessoa, e na hora eu falei que queria ser a Hebe Camargo das drags", conta rindo para o Terra Nós. O ano era 2002 e Ikaro começara a se montar dois anos antes. "E olha que engraçado, o sonho está mais próximo da realidade do que eu imaginei", completa orgulhosa.

A drag Alexia Twister, outra grande personalidade da cultura drag brasileira inclusive é um dos muitos nomes que Ikaro cita ao longo de uma hora de entrevista, encaixada na agenda corrida, enquanto faz as unhas em uma manicure. Consciente do seu papel dentro da comunidade LGBTQIAPN+, faz questão de citar parceiras, inspirações e referências, costurando sua história com a do movimento do qual faz parte e que luta há décadas por direitos. 

"Eu tinha 16 anos quando entrei em um bar LGBTQIAPN+ pela primeira vez, chamava 'Divina Ciência'. Era pequeno, discreto e a gente tinha que esperar a rua ficar vazia para entrar para não correr o risco de ser agredida. Era uma quinta-feira e estava lá a Amanda Di Polly. Foi uma emoção imediata", lembra, contando que, na época, as drags atuavam como uma "cola social" e faziam correio elegante nos espaços. 

"Se viam que você estava sozinho, vinham, conversavam, apresentavam para as outras pessoas que estavam no local", explica. Diante da timidez quase patológica, encontrou na arte drag o escape para viver plenamente e três anos depois estava decidida que começaria a performar. "Foi em 1999, mas passei um ano todo elaborando qual seria a minha estética, meu nome, qual tipo de música ia dublar aí em 2000 aconteceu, participei do meu primeiro concurso e nunca mais parei". 

E não parou mesmo: das baladas de São José foi para a capital do estado, ficou em segundo lugar em um concurso promovido pela extinta casa noturna Planet G, na rua Rego Freitas e ganhou o "Se vira nos 30", da Blue Space, icônica boate na Barra Funda em funcionamento até hoje. "A gente tinha que se apresentar entre 30 segundos e um minuto, uma loucura. Depois de seis meses, entrei para o elenco fixo da Blue e lá se vão 18 anos", diz. 

De babá à parceira de trabalho

Das pistas para as estradas do Brasil ao lado de Xuxa foi um longo percurso. Filho de um pai alcoolista e abusivo, teve na rainha dos baixinhos companhia de infância. "Quando meu pai chegava em casa e minha mãe já sabia que ia bater nela, me colocava no quarto e ligava na Xuxa, na hora que a nave ia embora eu chorava porque sabia que ia voltar para realidade", relembra contando ainda que, ao gravar o reality "Caravana de Drags", fez questão de fazer uma videochamada com Xuxa e a mãe para agradecer ambas. 

A mãe, inclusive, é figura central na vida da drag. "Quando me assumi gay aos 13 anos fiz uma trouxinha de roupa e coloquei em um cabo de vassoura, igual no Pica Pau, pronta para ser expulsa de casa, mas minha mãe só falou 'tudo bem, mamãe já sabia, fica tranquilo'. Aproveitando o embalo, minha irmã contou que era lésbica e roubou o meu momento!", relata gargalhando. 

Na mesma conversa, a mãe contou para Ikaro que era bissexual. Moderna, Dalva tem 60% do corpo tatuado, já teve cabelos descoloridos, coloridos, com cortes moicanos. "Vejo muito do enfrentamento do mundo através de mamãe. Ela luta comigo, chora comigo, toda vez que pode me acompanha", conta com carinho, lembrando que, quando começou a ir para baladas LGBTQIAPN+, a mãe pediu para ir junto. "Queria saber como era, gostou, continuou indo e, quando eu vi, tinha quatro pessoas que não conhecia morando com a gente. Eram os jovens gays que não tinham para onde ir e ela conhecia quando ia ver minhas apresentações". 

O carinho e acolhimento da mãe foi proporcionalmente inverso ao do avô paterno. "Quando eu tinha 14 anos, ele me levou para um exorcismo e, quando viu que não teve efeito me levou para um prostíbulo onde tentou obrigar uma prostituta a me estuprar, afinal eu era menor de idade. Sou sobrevivente de resquícios medievais", relembra em um raro tom sério. A partir daí, mal teve contato com a família paterna ou com o próprio pai que faleceu em decorrência do uso abusivo de álcool. 

Para além do arco-íris (mas nem tanto) 

Se engana, porém, quem pensa que a vida de Ikaro foi só plumas e paetês. Atlética, na adolescência foi levantadora de vôlei no time de São José dos Campos, corredora competindo em provas curtas como 100 e 200 metros, com e sem barreira, e terceira colocada no estado de São Paulo em uma competição de salto em distância. 

Esse currículo esportivo fez com que se tornasse a primeira embaixadora drag no mundo da Nike. Dentre as atribuições: participar de eventos esportivos do jeito que mais gosta, montada. Agora em 2022, foi pela primeira vez à Neo Química Arena, estádio do Corinthians, time do coração.

Sobre a Copa do Mundo no Catar, esbraveja um tanto resiliente. "É um absurdo e uma pena, uma Copa em um país onde o organizador diz que homossexualidade é um dano mental, onde você pode ser preso ou morto por ser gay. E não tem nem como torcer pela nossa seleção que se recusou a participar de um protesto onde o capitão usaria uma faixa do arco-íris. Essa Copa é uma mancha na história do esporte, espero que não se repita novamente".

Na agenda de 2023, além dos compromissos com a marca esportiva e o lançamento de "Caravana de Drags", Ikaro integra o tive de curadoria do "Love Cabaret", casa noturna que ocupará o espaço da tradicional "Love Story", no centro de São Paulo, além de muitas outras novidades que ainda não podem ser compartilhada pela estrela. 

Ikaro Kadoshi se emociona ao encerrar live da Parada LGBT+:
Fonte: Redação Nós
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