Script = https://s1.trrsf.com/update-1731945833/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

"Sou uma mãe intersexo e a maternidade me salvou"

Criada como menino, Mayara se descobriu uma pessoa intersexo só na idade adulta, teve gravidez psicológica e amamentou bebê

26 out 2023 - 05h00
Compartilhar
Exibir comentários
"A Paola me deu propósito. Eu amo ser mãe, nossa ligação é mágica", celebra Mayara
"A Paola me deu propósito. Eu amo ser mãe, nossa ligação é mágica", celebra Mayara
Foto: Acervo pessoal

A seguir, leia o depoimento de Mayara Natale ao Terra NÓS:

Meu nome é Mayara Natale, tenho 35 anos, e sou uma mulher intersexo. Descobri que era uma pessoa intersexo apenas na fase adulta. Foi quando conheci o trabalho da Thais Emília, presidente da Associação Brasileira Intersexo (ABRAI), e de seu filho, Jacob, bebê-símbolo da luta intersexo no Brasil. É ótimo poder contar partes da minha história na data de hoje, Dia da Visibilidade Intersexo.

Trabalho como modelo, sou ativista e secretária da ABRAI, coordenadora adjunta da Aliança Nacional LGBTI+ na área de Intersexo, e membro Intersexo da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB e da Comissão de Diversidade de São Vicente. Comecei inicialmente na ABRAI com uma pessoa assistida e recebi muito carinho e apoio ali. Virei uma pessoa associada e depois fui convidada para participar mais ativamente e me tornei secretária da associação.

Fui criada como um menino, mas sempre tive traços, jeito, voz e corpo de menina. Na infância, vivi uma espécie de pingue-pongue na família: uma hora eu estava com a minha avó, outra hora estava com a minha mãe. Minha avó paterna, dona Zélia, foi a primeira pessoa a perceber que eu era diferente. Ela falava assim: "Você não tem jeito de homossexual, de gay, você tem jeito de menina mesmo". E era verdade: os traços, o jeito, os pensamentos... Tudo de menina, mas fui criada e registrada como um menino. 

Em palestra na OAB: ativismo contra o preconceito de pessoas intersexo
Em palestra na OAB: ativismo contra o preconceito de pessoas intersexo
Foto: Acervo pessoal

Só que, com 11 anos, eu não tinha pelos no corpo nem voz grossa. Minha puberdade não trouxe sinais masculinos, como se esperava. Não tinha seios, porque era extremamente magra, mas dava para perceber que teria curvas. Meu corpo foi mudando bastante e dos 14 para os 15 anos eu realmente pude ser eu mesma, Mayara: saía na rua, convivia com as pessoas em festas, em bares, e as pessoas me tratavam como qualquer mulher cis. Não olhavam questionando coisas como "será que é homem?" ou "será que é mulher?". 

Aos 20 anos, tive uma decepção amorosa e fui parar na igreja. Nessa fase precisei deixar de ser eu mesma e viver um personagem masculino para agradar a sociedade, os parentes e Deus. Na verdade, só estava me anulando como ser humano, porque eu não sabia que eu era intersexo, também não me via como uma pessoa travesti ou trans. Eu entendia que eu sempre tinha sido uma mulher.

Me casei, mas não gosto muito de falar sobre isso, pois foi um relacionamento abusivo. Minha filha Paola, que acabou de completar 8 anos, foi gerada em outra mulher e também não posso fornecer mais informações a respeito dela pois há um processo correndo em segredo de justiça. O fato é que quando a Paola nasceu, essa mulher deixou a nossa casa e enfrentei dificuldades para ver a minha filha.

NÓS Explicamos: O que você precisa saber sobre pessoas intersexo :

O sofrimento foi tanto que meu corpo começou a mudar, meu pico de hormônio subiu, minha barriga passou a crescer e meus seios aumentaram de maneira extrema. Eu vivia como um menino da igreja, de terno e gravata, era impossível andar por aí com os seios grandes e com leite. Fui ao psiquiatra para tentar entender o que estava acontecendo e aí me descobri intersexo, já que é impossível um homem ter um quadro de gravidez psicológica como o meu. Não sei se sofri algum tipo de mutilação precoce na infância,. Meu corpo oscila demais na questão hormonal, isso tudo mostra como sou diferente. Não tomo hormônio para ser mulher, sou mulher.

Ao lado de Thais Emília, da ABRAI, na Parada LGBT deste ano: entidade oferece acolhimento que não recebeu da família
Ao lado de Thais Emília, da ABRAI, na Parada LGBT deste ano: entidade oferece acolhimento que não recebeu da família
Foto: Acervo pessoal

Eu crio minha filha desde que ela nasceu, então a outra mãe não tem a maternidade, quem tem toda a maternidade sou eu. Hoje, a guarda dela é minha. Eu cheguei a amamentá-la em um curto período, porque o meu desejo de estar com a minha filha era tão forte que meu corpo fez isso comigo. Sou lactante até hoje, isso faz parte da minha condição intersexo. Já fiz todo tipo de exame para ver se eu tinha problema na hipófise, se eu tinha algum problema hormonal, tirei hormônio, coloquei hormônio, coloquei bloqueador de testosterona, tirei bloqueador. Enfim, digo que os médicos fazem até um laboratório com pessoas intersexo porque a gente é bem diferente das outras pessoas no quesito corpo. 

Meu relacionamento com a minha mãe, que hoje mora em Portugal, sempre foi triste, porque eu sempre busquei o amor dela e só fui renegada, deixada de lado. Minha mãe fala que Deus não fez pessoas intersexo, quem fez pessoas intersexo foi o diabo. Eu tenho parentes que até hoje me chamam pelo meu nome morto e não me respeitam como uma mulher. Essa questão familiar é muito triste, porque muitos parentes contam a minha história de uma maneira distorcida para outros. São pessoas transfóbicas e fanáticas religiosas. Além da minha avó paterna, que me respeita, considero as pessoas da ABRAI a minha verdadeira família. 

Eu tentei me matar sete vezes, porque o meu primeiro preconceito era contra eu mesma. Afinal, venho de uma família tradicional e rígida. Eu tinha pensamentos negativos sobre mim, sobre a minha imagem. Talvez o meu corpo tenha demorado para se desenvolver por causa disso. Faço tratamento psicológico há mais de 20 anos e, com essa ajuda, consegui desbloquear muitos traumas, muitas coisas ruins que eu ouvia, que me rebaixava como mulher. E hoje, como mãe, eu preciso de terapia para poder estar bem comigo mesma e cuidar da Paola.

Desejo de cuidar da filha foi tão grande que Mayara conseguiu amamentá-la
Desejo de cuidar da filha foi tão grande que Mayara conseguiu amamentá-la
Foto: Acervo pessoal

Sabe, fico até emocionada ao falar da minha filha. Com ela recebi amor de verdade pela primeira vez na minha vida. É uma criança que me ama pelo o que eu sou e não me julga. Se algum parente se aproxima de mim e fala o meu nome morto, ela avisa na hora: "O nome da minha mãe não é esse, é Mayara, respeita a minha mãe".

Ela conta na escola que a mãe dela é intersexo, faz desenhos da bandeira intersexo, ensina os coleguinhas e os professores que existem pessoas que nascem com dois genitais e tudo bem. Tudo o que não tive da minha mãe, estou dando em dobro para ela. Conversamos abertamente, de uma maneira equilibrada, é claro, sobre abuso sexual infantil. Desde cedo ensinei que não se deve mexer em órgãos de pessoas adultas, que não deve falar com estranhos, o que pode ser feito e o que não pode, o que é respeito. Protejo para que ela não passe. Quero que ela tenha infância, pois a minha foi bem triste. Além das torturas físicas e psicológicas impostas pela minha mãe, fui estuprada pela primeira vez aos seis anos de idade. 

A Paola me deu propósito. Eu amo ser mãe e falo com toda a certeza de que a nossa ligação é mágica. Com ela eu aprendi o que é ser uma família, tenho Natal, tenho Ano Novo. Viajamos, brincamos, cantamos juntas as músicas do desenho "Frozen". Tudo o que ela quer é me agradar, se sentir amada e sorrir. Eu também. A Paola é tudo o que eu tenho e cada trabalho meu é dedicado a ela. E ela é minha cara, né?"

O que significa o I da sigla LGBTQIAPN+ O que significa o I da sigla LGBTQIAPN+

Fonte: Redação Nós
Compartilhar
TAGS
Publicidade
Seu Terra












Publicidade