Tenentismo: Cadetes são 47% pardos ou negros na Academia das Agulhas Negras
Escola dos futuros tenentes se aproxima do perfil geral da população do País
Os números mostram que o perfil do cadete da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) está cada vez mais próximo daquele desenhado pelo IBGE para a população geral. A participação de negros e pardos entre futuros tenentes do Exército já quase supera o total de brancos entre os futuros oficiais.
Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). É a Aman que forma os oficiais que comandarão o Exército. Até 2020, a academia recebia todo ano cerca de 430 cadetes. Nos últimos dois anos, esse total caiu para 360. Atualmente, existem 1.659 cadetes matriculados. Os nascidos no Estado do Rio formam quase um terço do efetivo, com 554 alunos. São seguidos pelos gaúchos, com 253, e pelos paulistas, com 204.
O perfil dos cadetes ajuda a entender a relação do Exército com seu tempo. Conta o historiador José Murilo de Carvalho que a Força Terrestre, nos anos 1930, durante o Estado Novo, baixou instruções que permitiam a exclusão das escolas militares de candidatos negros, judeus, não católicos e filhos de estrangeiro. Hoje os dados mostram que os brancos são 871 cadetes, os que se declararam pardos somam 571 e os que se disseram negros, 211.
A religião predominante é a católica - 48,5% dos alunos. O comandante da academia, general de brigada João Felipe Dias Alves, disse acreditar que a profissão militar requer principalmente "o requisito vocação, em virtude da devoção e sacrifícios exigidos ao longo da carreira". "O sentimento de patriotismo e o desejo de servir à Nação inspiram e atraem os jovens de hoje. Outros fatores de atração se originam do fato de as atividades da caserna primarem pela boa organização, correção, respeito às leis e regulamentos e possibilidade de 'fazer a diferença' em prol de um país melhor."
Valores
A valorização do chamado ethos militar nas academias tem papel importante para a compreensão das ações dos militares na República. Para a historiadora Isabel Aragão, o não reconhecimento dos valores militares foi o estopim da revolta do Forte de Copacabana, em 1922, evento fundador do tenentismo.
"A construção de uma identidade sempre ocorre a partir de diferenças estabelecidas. É a ideia de oposição aos demais que fornece os limites demarcadores, as fronteiras simbólicas das construções identitárias." No caso do Exército, esse fator contribuiu para "a criação de uma rivalidade histórica entre civis e militares".
Nascido em Jundiaí (SP), e filho de coronel do Exército e de uma bancária, o general Dias Alves disse que cada geração do Exército "vive seus próprios desafios". "Minha geração viu de dentro da academia a queda do Muro de Berlim e viveu os desafios do mundo pós-Guerra Fria, expansão da globalização, avanço do multilateralismo, informatização e era da informação."
Para ele, a geração atual já é formada na era do conhecimento, "em um mundo sem fronteiras para a comunicação digital, em um ambiente informacional em constante evolução". As mudanças se refletem no currículo da academia. "Ele busca se adaptar às mudanças de cenário e preparar os cadetes para os novos desafios. Um exemplo é a introdução da disciplina escolar de cibernética nos últimos anos."
Para ele, o que não muda na formação e "em todas as gerações de oficiais são os valores desenvolvidos nesta fase inicial da carreira, expressos no código de honra do cadete que se traduz no culto à verdade, lealdade, probidade e responsabilidade". O curso tem duração de cinco anos, quatro deles na Aman. No primeiro ano, o cadete enfrentará 1.059 horas de estudo, das quais 626 (59%) são de matérias de técnica militar, enquanto o restante se divide entre exatas, humanas e línguas. A academia é um curso de formação superior. Quando a Aman foi fundada, em Resende (RJ), o sistema de universidades do País engatinhava.
Doutor em História pela Universidade de Paris e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Manuel Domingos afirmou que não dá para escrever a história militar sem levar em conta as universidades. "A função do Exército nos anos 1920 era de substituir, de formação de quadros capazes de discutir o destino do País, a função da metalurgia, da cartografia." Para Domingos, enquanto o Estado organizava sua burocracia, essa função de pensar os rumos do País era monopólio dos militares. "Mas esse monopólio acabou à medida que São Paulo formou sua própria elite, capaz de discutir os problemas. A fundação da USP (Universidade de São Paulo) começou a romper o monopólio."