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Trabalho doméstico: "Não recomendo para ninguém"

Anos de exploração e abusos em “casas de família” formaram opinião de Leila sobre a exploração do trabalho doméstico

6 set 2023 - 16h00
(atualizado às 16h04)
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“Ela me chamava de preguiçosa, imprestável, nega do cabelo duro, cabocla” relembra Leila*
“Ela me chamava de preguiçosa, imprestável, nega do cabelo duro, cabocla” relembra Leila*
Foto: AzMina

Uma menina alta para os seus 10 anos, de cabelos cacheados, pele negra, e de sorriso fácil. Ao lado do pai, ela vivia se mudando, conhecendo vários lugares. Mas sua felicidade era limitada pela falta de um lugar certo para morar. Ela já desejava algo diferente quando apareceu um homem oferecendo trabalho, moradia e melhoria de vida. Mas era preciso deixar a família e mudar de estado.

A contragosto do pai, ela juntou uma trouxa de roupas e partiu em aventura para um lugar desconhecido. Ao chegar no destino, o choque: aos 15 anos, foi deixada na casa de desconhecidos para servir uma família em condições análogas à escravidão. Foi vítima do tráfico de pessoas.

Essa é a história real de Leila*. A mulher preta de 54 anos foi do Maranhão ao Pará ainda adolescente, enganada por promessas de uma vida melhor. Hoje, ela entende que o pai – o avô que a criou – era, na verdade, um andarilho, e perambulava sem rumo pelo interior do Maranhão. 

Sentada na escada da casa simples na Região Metropolitana de Belém, Leila tem ótimas memórias da infância nômade: andava de canoa, pescava e brincava livremente. “Quando ele achava que não estava legal, ele mudava para procurar melhorias”, diz ela sobre o pai/avô em meio a risadas. 

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A CHEGADA AO PARÁ

Leila chegou a Belém em 1985, com o homem que trazia mulheres para trabalhar na capital paraense, sem saber que seria empregada doméstica. “Ele só me largou lá numa casa como se fosse um filhote de cachorro”, conta ela. Leila não tinha sequer um contato da família no Maranhão. 

O serviço era de babá, mas ela não se adaptou. “A criança não gostava de mulher”, lhe disse a patroa, antes de “repassá-la” para uma conhecida, Silvana*, sem qualquer consulta. Vinda de outro estado, sem saber ler, nem conhecer ninguém, se tornou uma vítima frágil da exploração. Além de tomar conta da casa, cuidava de duas crianças. “Uma era Branca de Neve e a outra era o Coringa”, recorda Leila, que era adolescente na época.

“Ela mandava fazer as coisas, eu tentava fazer, só que eu não sabia. Uma coisa que me marcou muito foi quando ela mandou fazer um pirarucu (peixe típico da região). Peguei o pirarucu e botei na panela com as batatas descascadas. Quando ela chegou, só não me bateu, porque o resto…”

Era xingada, sofria com o racismo e comentários maldosos feitos por Silvana. “Ela me chamava de preguiçosa, imprestável, nega do cabelo duro, cabocla”. Após as sessões diárias de humilhação, Leila se recolhia. “Tinha um quartinho que ela dizia que era meu, o quartinho de empregada, eu chorava noite e dia”. A “filha boa” da patroa, a “Branca de Neve” consolava Leila. Menos de um ano depois, uma prima de Silvana ficou grávida, e foi mais uma vez “passada” para outra pessoa sem poder opinar. Ela ainda se lembra das palavras: “Leva isso que eu não quero”.

MEIO SALÁRIO-MÍNIMO

Fátima, a tal prima, passou os primeiros quatro meses após o parto ensinando Leila a cuidar da criança e da casa. A adolescente fazia as compras da semana a pé, caminhando quase 5 km, e uma lista de compras na mão. “O pessoal pensava que eu sabia ler, mas eu não sabia, tava tudo decorado”. Chegava em casa esgotada, mas só podia descansar depois de guardar tudo. Ali receberia seu primeiro “salário” – ela não lembra o valor –, que era pouco, mas trouxe alguma esperança de “liberdade”. 

Essa patroa ainda era melhor do que as outras duas, mas seu marido, não. No pouco tempo em que estava em casa, fazia questão de reclamar de tudo, sempre aos berros. Uma vizinha acabou escutando, e lhe ofereceu um novo emprego dois anos depois. Pela primeira vez, Leila pôde decidir por um novo trabalho. Lívia tinha dois filhos, dos quais Leila cuidou por 7 anos, e recebia meio salário-mínimo, que ela pensava ser um inteiro. Sem obrigações, gastava com roupas, cabelo e unhas. Tinha acabado de completar 18 anos e resolveu começar a estudar. A dona da casa era gentil, mas o marido era um assediador sexual contumaz. 

Leila ameaçava revelar a situação e ouvia: “Ela vai te mandar embora e tu não tem onde morar”. Um dia ela se cansou e contou tudo, mas não adiantou muito. Um tempo depois “continuou tudo de novo”. Juntou tudo que tinha e colocou na mochila da escola. Na volta, ficou na casa de Paulo, hoje seu marido.

UM LUGAR PARA ONDE VOLTAR

“Eu imagino que fomos feitos um para o outro”, diz ela, romântica, sobre Paulo. Estavam juntos havia dois anos quando chegou à casa dele com tudo que tinha nas costas, mas não havia planos de casamento. “Disse que se ele quisesse ficar comigo era naquele momento”. Paulo respondeu na hora: “Não vou deixar você ir embora”.

O casal namorador já tinha louças, panelas e um fogão no enxoval. Tiveram quatro filhos, e construíram juntos a família que tanto Leila queria. A primeira casa alugada foi uma realização. Ter para onde e para quem voltar ajudou Leila a se posicionar no trabalho e resistir à exploração. “Foi aí que eu me libertei. Continuei trabalhando em casa de família, só que eu não deixava mais as pessoas me pisarem.” 

O sonho da casa própria veio mais de 30 anos depois, quando o casal comprou um terreno e foi construindo do jeito que dava. São dois andares, quatro cômodos, estrutura de madeira e piso cimentado. A cozinha fica do lado de fora, ainda sem paredes. 

Leila tornou-se amiga de Lívia* – a última patroa, esposa do assediador -, madrinha de seu primeiro filho, Alexandre. “A gente passa muito tempo sem se ver, mas ela é minha comadre, nós nos damos bem”.  Atualmente, Leila faz alguns trabalhos como diarista e se dedica ao cuidado da própria casa, além de vender cuscuz doce aos finais de semanas. A iguaria tem até divulgação nas redes sociais, feita por uma das filhas. Sobre o trabalho doméstico, ela é enfática: “Não recomendo para ninguém”.

*Nomes fictícios para preservar a entrevistada 

Clique aqui e acesse a reportagem  original

AzMina
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