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Violência doméstica cometida por militares: entenda como a legislação atual contribui com a impunidade

Sem dados, a violência doméstica cometida por militares ainda é um tabu dentro das corporações; PL na Câmara pretende aumentar a penalização para agressores militares

20 out 2022 - 12h37
(atualizado às 12h57)
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A foto mostra duas policiais com um x vermelho na mão, símbolo contra a violência doméstica
A foto mostra duas policiais com um x vermelho na mão, símbolo contra a violência doméstica
Foto: Imagem: Divulgação/Aluno Sargento Picanço e Soldado Jordan / Alma Preta

No primeiro semestre de 2022, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo violência doméstica contra as mulheres. As informações correspondem a cinco formas em que essas violações podem acontecer: violência física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. 

O número de casos de violações aos direitos humanos de mulheres são maiores do que as denúncias recebidas, já que uma única denúncia pode conter mais de uma violação de direitos humanos, além de muitas vítimas que são coagidas a não registrar denúncia. Os dados referem-se à violência doméstica ou familiar contra mulheres brasileiras até a primeira semana de julho de 2022. 

Apesar dos dados não trazerem recortes pela ocupação do agressor para saber quantos deles são cometidos por militares, profissionais da segurança pública entrevistados pela Alma Preta Jornalismo afirmaram que as ocorrências contra colegas da corporação e de outras instâncias militares são inúmeras. 

Uma policial militar, que preferiu não ter sua identidade revelada, disse que já precisou atender algumas ocorrências de violência doméstica em que  os agentes de segurança pública e membros das Forças Armadas são agressores. Ela contou que nestes casos o tratamento dado ao agressor é bastante privilegiado em relação a um cidadão comum. 

"Quando a ocorrência é contra militares o procedimento padrão é comunicar ao supervisor. Uma vez, quando o supervisor chegou, ele quis convencer a vítima de não prestar queixa. Ele conversou primeiro com o agressor e falou para a mulher que conhecia o marido dela, que era para ela pensar nos filhos", relatou a soldado. 

A agente disse ainda que, assim a mulher decidiu ir à delegacia, o homem, que era um major, teve diversas regalias como: ir em carro particular, não ser algemado ou conduzido por policiais, não precisar entrar na delegacia e ainda prestou depoimento com tranquilidade. 

Por ser uma mulher negra, a entrevistada disse que percebe a diferença de tratamento entre vítimas negras e brancas. Segundo ela, as mulheres negras, sendo elas militares ou cidadãs, são muito mais agredidas em casa e sofrem, ainda, com o racismo institucional dentro das polícias quando vão prestar queixa.

"Acontece todos os dias. A violência doméstica, até entre colegas que se relacionam dentro das corporações, é um fato grave, mas se fala muito pouco sobre isso. Como o nome já diz, a corporação é um corpo e o corpo se protege. Principalmente quando se fala de homens. A coisa fica ainda mais séria à medida que a patente vai subindo e a pessoa tem todas as ferramentas a seu favor", ressalta a policial. 

Origem psicológica

Pedro Chaves Mattos, agente da Polícia Civil de Natal, no Rio Grande do Norte, afirmou que, em sua corporação, quanto maior a patente, as advertências e ações administrativas que este superior está respondendo ficam sob sigilo e não é possível identificar tais crimes de maneira transparente. 

Ele, que é coordenador do movimento Policiais Antifascistas-RN, diz que o "embrutecimento" de militares e agentes de segurança pública devido à pressão, às dores e à violência é reproduzido em casa, com os mais frágeis - em geral, mulheres e filhos, depois os pais idosos. 

O psicólogo Luciano de Sá, membro do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal disse que, ao atender os militares, percebe que isso às vezes reflete em casa porque é onde essa pessoa descarrega suas emoções. Segundo ele, muitas vezes essa descarga emocional está associada ao uso excessivo de álcool. 

"Então coincide nesse ciclo de violências, que traz de um ambiente militarizado extremamente opressor e reverbera dentro de casa, levando até a morte de mulheres". 

Punição de militares

À violência doméstica, uma vez caracterizada crime militar por agressão, pode ser aplicada a Lei Maria da Penha (Lei 11340/06). Os militares, sejam eles estaduais ou federais, estão sujeitos a um regime jurídico peculiar. Assim, é aplicável, além dos preceitos previstos nos regulamentos e códigos de ética, o Código Penal Militar e será considerado crime militar aquela conduta típica, ilícita e culpável que se enquadrar em uma das situações previstas no art. 9º do Decreto-Lei nº 1001/69 (CPM), violência doméstica é um deles . 

De acordo com a advogada Michele Merlin, hoje é possível a garantia de medida protetiva de urgência que obriga a suspensão da posse ou restrição do porte de armas. Ela ressalta ainda que é possível aplicar ainda a Lei 10.826/2003, segundo a qual sua arma da corporação ou particular deve ser recolhida com intuito de evitar um mal maior por parte do agressor. Há também a previsão do afastamento do lar, domicílio ou local de convivência se determinada pela  justiça, não cabendo Habeas Corpus.

Conforme Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, primeira mulher nomeada para o cargo de ministra do Supremo Tribunal Militar,  por se tratarem, tanto o Código Penal Militar quanto a Lei Maria da Penha, de leis especiais e regulamentarem tipos penais afins nos crimes contra a pessoa, poderia se supor um conflito de normas constitucionais e/ou legais. Não é o caso. 

Isso porque, para um crime ser considerado de natureza militar, precisa afrontar os princípios fundamentais norteadores da ordem, disciplina e hierarquia das Forças Armadas. "Assim, o delito só se define como tal, quando cometido em prejuízo da funcionalidade do Exército, Marinha e Aeronáutica", afirma a magistrada. 

"Os que estiverem fora desse enquadramento encontram óbice de natureza formal para sua apreciação na Justiça especializada e, por esse motivo, descabe a incidência da legislação que respeita o serviço militar em processos de violência de gênero", explica em seu artigo A Lei Maria da Penha e o Direito Penal Militar. 

PL na CCJ da Câmara

Um Projeto de Lei quer modificar o Código Penal para penalizar, com a perda de posto e patente, os oficiais das Forças Armadas que forem condenados por crime de violência doméstica e familiar. A proposta, de autoria do deputado Cássio Andrade (PSB-PA), está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) sob relatoria do deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG). 

Leia mais: PL que penaliza militares por violência doméstica enfrenta obstáculos na Câmara

Além dos oficiais, os praças - militares de baixa patente - serão penalizados com a exclusão da corporação. A proposta está sujeita à apreciação conclusiva pelas comissões e não precisa passar pelo plenário para ser aprovada. Em sua comissão de temática, a de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, o PL 3634/2019 recebeu um parecer favorável, além de uma complementação. 

O relator na CCJ, Subtenente Gonzaga, declarou em seu parecer que esta matéria estaria criando duas normas conflitantes. Segundo ele, a Constituição Federal e o Código Penal Militar "já preveem a aplicação da perda de patente ou exclusão das Forças Armadas do militar que for condenado pela prática de qualquer crime com pena superior a dois anos, o que, obviamente, engloba o de violência doméstica". 

No entanto, a Constituição só garante a demissão de oficiais das Forças Armadas e Forças Auxiliares com a perda do posto ou graduação somente por decisão de tribunal competente, que é o Tribunal Militar. Na ausência de uma instância específica, o Tribunal de Justiça é o responsável, mas raramente eles terão uma condenação automática.

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Alma Preta
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