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Violência doméstica: 'Fui indiciada por ajudar ex abusivo que cometeu assassinato'

Britânica Megan virou alvo da Justiça no dia em que seu ex-parceiro foi detido por homicídio; ONG denuncia que muitas mulheres são "duplamente vítimas", porque sofrem violência doméstica e perseguição judicial.

8 abr 2022 - 11h26
(atualizado às 11h27)
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ONG britânica denuncia que muitas mulheres são "duplamente vítimas" - tanto de seus parceiros abusivos quanto da Justiça
ONG britânica denuncia que muitas mulheres são "duplamente vítimas" - tanto de seus parceiros abusivos quanto da Justiça
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Vítima de violência doméstica, a britânica Megan, de 29 anos, foi indiciada por obstrução da justiça por ter ajudado seu ex-parceiro depois que ele foi acusado de homicídio.

"Provavelmente morreria nas mãos daquele homem", diz ela à BBC sobre o período de seu relacionamento. "E isso quase aconteceu algumas vezes."

"Acordava todos os dias com uma sensação inteiramente nova de pavor e desespero", acrescenta.

Assim como Meghan, milhares de mulheres do Reino Unido são "duplamente vítimas" — tanto de seus parceiros abusivos quanto da Justiça, segundo denuncia a ONG Center for Women's Justice.

A entidade alerta que, devido a "leis e práticas impróprias", mulheres vulneráveis, forçadas ao crime por seus agressores - incusive em casos de defesa própria -, são"injustamente" presas pela Justiça britânica, detidas e processadas por delitos decorrentes diretamente de sua experiência de abuso, incluindo se defender de agressões físicas.

Isso inclui cenários em que as vítimas de abuso doméstico são coagidas a infringir a lei e também casos em que a vítima é forçada a se defender contra seu agressor.

'Dormente' por dentro

Megan conheceu seu ex-namorado quando tinha 23 anos e ele, 38.

Eles se apaixonaram rapidamente, mas aos poucos ela passou a perceber nele um comportamento errático.

Depois de experimentar três anos de abuso emocional, financeiro e físico, Megan diz que ficou "dormente" por dentro.

"Acordei com medo de estar viva e ter que passar mais um dia com ele sem saber o que ele faria", acrescenta ela.

"Ele me estrangulou, me bateu, me jogou no chão, me chutou, colocou uma faca na minha garganta".

"Aceitei meu destino, mas ele também ameaçou absolutamente todos na minha vida. Minha família, meus amigos."

Em junho de 2019, quando seu ex foi preso — e depois condenado — por assassinar seu primo, Megan sentiu que poderia finalmente estar segura e livre das garras dele.

Mas esse sentimento durou pouco — porque ela própria foi presa e processada por obstrução à Justiça.

No dia do assassinato, os dois estavam hospedados na casa dos pais dela em Teddington, um subúrbio no sudoeste de Londres. Megan diz que seu ex pediu a ela para buscá-lo na estação de trem e sacar dinheiro para ele - algo que, diz, costumava fazer por ele diariamente.

A Promotoria acabou usando isso como evidência de que ela havia ajudado seu parceiro em um assassinato do qual ela não sabia nada.

Megan e seus pais alegam que a polícia e o Crown Prosecution Service (CPS, o Ministério Público do Reino Unido) estavam cientes do contexto do abuso doméstico desde o início, mas optaram por processar Megan de qualquer maneira.

Falando sobre o caso de Megan, o CPS disse à BBC que "o apoio à vítima está na vanguarda de todas as etapas de uma acusação".

"Não é papel do Crown Prosecution Service decidir se uma pessoa é culpada de uma ofensa criminal, mas fazer avaliações justas, independentes e objetivas sobre se é apropriado apresentar acusações para um júri considerar", diz o órgão, por meio de um comunicado.

"Estamos convencidos de que nossa decisão de apresentar essa acusação foi correta, de acordo com nossa avaliação legal, e respeitamos o veredicto que o júri chegou neste caso".

'Dois pesos, duas medidas'

"Não é do interesse público processar vítimas de abuso doméstico, que foram coagidas ou forçadas a cometer um crime. Isso simplesmente não deveria acontecer. Mas acontece rotineiramente", diz Katy Williams, do Center for Women's Justice, à BBC.

Katy acrescenta que há uma "falha" em proteger mulheres e meninas de "processos inapropriados".

Megan foi considerada inocente após um segundo julgamento em 2021
Megan foi considerada inocente após um segundo julgamento em 2021
Foto: Megan / BBC News Brasil

O governo britânico já havia reconhecido publicamente a ligação entre violência doméstica e infrações das quais mulheres são acusadas. Em 2017, quase 57% das mulheres presas no Reino Unido disseram ter sofrido abuso doméstico.

O Center for Women's Justice defende que seja feita uma emenda à lei de legítima defesa, que desse às sobreviventes que agem contra seu agressor a mesma proteção dada a quem se defende contra um invasor.

Além disso, a entidade preconiza uma defesa legal para vítimas de abuso doméstico, com base na Lei da Escravidão Moderna de 2015, que daria a sobreviventes proteção semelhante às vítimas de tráfico que são obrigadas a cometer infrações.

'Estava sozinha'

Os pais de Megan dizem que, no dia em que ocorreu a prisão do casal, foram informados por um inspetor da Polícia Metropolitana de Londres que detalhes da coerção e violência a que Megan foi submetida seriam usados como prova durante seu julgamento.

A evidência do abuso doméstico também estava disponível para o CPS, depois que Megan fez a denúncia à polícia.

Em dezembro de 2020, o CPS julgou Megan por obstrução da justiça, mas o júri não chegou a um acordo sobre o veredicto.

Um relatório psiquiátrico detalhado enviado ao CPS, ao qual a BBC teve acesso, elencou as condições de saúde mental que Megan estava sofrendo como resultado do abuso doméstico de seu ex.

Durante dois anos, Megan foi aconselhada por profissionais médicos de que era muito arriscado iniciar o tratamento para Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), porque a intensidade do tratamento, combinada com os procedimentos legais, poderia ter sido muito perigosa para ela.

"Estava tomando antipsicóticos neste momento e o CPS tinha acabado de chamar meus pais como testemunhas de acusação. Estava sozinha."

Megan diz que esses sintomas, incluindo alucinações, perda de visão e ataques de pânico, continuaram ao longo dos dois anos em que ela teve que enfrentar a Justiça.

Apesar disso, o CPS optou por levá-la aos tribunais de novo. Após ir a julgamento pela segunda vez, em julho de 2021, ela foi considerada inocente. A BBC apurou que, além dos custos incorridos pelo CPS, 32 mil libras (R$ 192 mil) foram gastos em advogados externos para processar Megan.

Em resposta ao relatório do Center for Women's Justice, o CPS disse que está atualizando sua orientação legal.

"Já estamos tomando medidas para melhorar todos os aspectos de como um caso é tratado, mas é necessário aceitar mais e consideraremos essas ações recomendadas com cuidado", afirmou em comunicado.

'Continuando o trabalho do meu ex'

"O CPS estava continuando o trabalho do meu ex para ele - eu ainda estava sob o controle daquele homem", diz ela. "Acho que o CPS estava mais interessado em obter uma condenação do que em justiça real".

"Acho que eles me processaram na esperança de que isso significaria uma pena mais longa para meu ex-parceiro. Eles tentaram me usar como um peão em sua partida de xadrez. Era um dano colateral fácil para eles."

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