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Vítima da pólio que viveu por 45 anos em hospital inspira peça teatral

Eliana Zagui teve quadro grave da doença e perdeu movimentos do pescoço para baixo, além de precisar passar por traqueostomia; espetáculo está em cartaz no Teatro Eva Herz até 1º de maio

23 abr 2022 - 05h10
(atualizado às 15h32)
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Eliana é amiga de Almir Labaki, para quem a história é prova de que ‘alma não pode deixar de valsar’
Eliana é amiga de Almir Labaki, para quem a história é prova de que ‘alma não pode deixar de valsar’
Foto: RICARDO LIMA / Estadão

Eliana Zagui conhece o mundo na horizontal. Quando em cadeira de rodas, a vista verticalizada ainda causa estranheza e, por vezes, é dolorosa. As lembranças verticais da vida são poucas e esmaecem na memória. Antes dos 2 anos, contraiu poliomielite, desenvolveu um quadro grave da doença, perdeu os movimentos do pescoço para baixo, precisou passar por traqueostomia e vive conectada a um respirador artificial. Viveu durante 45 anos no Hospital das Clínicas. Agora, seu livro autobiográfico inspirou a peça A Valsa de Lili, que está em cartaz no Teatro Eva Herz até 1.º de maio.

Hoje, aos 48 anos, vive um sonho: morar em casa. Reside com um amigo em Sumaré, no interior paulista. Dedica-se ao trabalho como artista visual - faz pinturas com a boca - e a escrever um novo livro, sobre a saída do HC. A tela e o papel em branco ajudam a contar a história da última sobrevivente da pólio do hospital paulistano.

Nascida em 1974, em Guariba (SP), filha de família humilde, Eliana era menina saudável e agitada, mas vivia com febre e garganta inflamada. Achavam que era coisa de criança. "Meus pais levaram a vários médicos, vários hospitais… Chegaram a me levar para vacinar, só que falavam que não podia vacinar criança com febre e dor de garganta. Ninguém sabia que já era um indício da poliomielite."

Altamente contagiosa, a pólio é causada pelo poliovírus selvagem. Crianças e adultos podem se infectar por meio do contato direto com fezes ou com secreções de infectados. A doença pode causar sequelas, normalmente motoras, relacionadas à infecção da medula e do cérebro pelo vírus. Entre elas a paralisia muscular - os sentidos na região se mantém. Não há cura para as sequelas, que são tratadas em fisioterapia.

Antes do último caso, registrado em 1989, o Brasil passou por vários picos, surtos e epidemias da doença nos séculos 19 e 20. Em 1994, o País recebeu o certificado de erradicação da pólio da Organização Pan-Americana da Saúde. No mundo, a doença ainda não foi erradicada. Para evitar a importação de casos, manter altas taxas de vacinação é recomendado. Durante a pandemia, as taxas de proteção contra diversas infecções evitáveis caíram. Conforme a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a imunização deve iniciar a partir dos 2 meses de vida, com mais duas doses aos 4 e 6 meses. Reforços entre 15 e 18 meses e aos 5 anos são necessários. A vacinação é por via intramuscular e oral (gotinhas).

Com diagnóstico tardio, Eliana chegou ao HC já bastante debilitada, com uma paralisia que atingia 60% do corpo. Naquele momento, a luta era para evitar que a doença se alastrasse para o sistema respiratório. Ela foi colocada na máquina pulmão de aço para que o diafragma voltasse a funcionar sozinho. A medida não funcionou. Eliana precisou fazer traqueostomia e ser conectada a um respirador. "A princípio, o prazo de vida era de até dez anos", lembra Eliana.

Durante 45 anos, ela viveu dentro do HC, em um quarto que ficava em frente às unidades de terapia intensiva (UTI). "Da janela do hospital, eu só via copas de árvore." Entre quatro paredes brancas, aprendeu a ler e a escrever, e foi educada por uma família, composta de enfermeiros, médicos e técnicos. No hospital, ganhou sete irmãos que, como ela, eram vítimas da pólio: Paulo, Pedro, Anderson, Luciana, Tânia e Cláudia. Paulo Henrique Machado, o mais velho, morreu em 2020. Foi com ele que Eliana compartilhou boa parte da vida. "Era muito mais mãe (dele) do que irmã", lembra, com um sorriso no rosto.

Para se ter uma ideia, ela só foi deixar o hospital, por poucas horas, aos 15 anos, com a evolução dos respiradores. "Vivia o mundo por fotos e TV." Junto às telas, o papel em branco também sempre foi seu parceiro. "É mais do que uma terapia", explica, sobre o ato de escrever. "Eu tinha tanta sede de escrever, de pôr pra fora, que adquiri LER (lesão por esforço repetitivo) na boca."

No início dos anos 2000, após a ligação de uma enfermeira que a ajudou a chegar ao HC, começou a juntar esses escritos despretensiosos com entrevistas com médicos e familiares. Como resultado, em 2012, lançou o livro Pulmão de Aço - Uma vida no maior hospital do Brasil, pela Editora Belaletra.

Quando, por acaso, esbarrou com o livro de Eliana, Aimar Labaki ficou muito surpreso. "Gostei dele por não ser nem de autoajuda nem de autocomiseração." Decidiu conhecer a autora pessoalmente e tornaram-se amigos. Durante cerca de um ano de visitas, desenvolveu o texto que deu origem à peça A Valsa de Lili. "A peça não é sobre ela, é a partir dela", diz.

A peça estreou em 2019, mas, com a pandemia, as sessões só foram retomadas no fim do ano passado. Por se tratar da imobilidade humana frente a crises, tornou-se ainda mais atual. Labaki reforça que a história não é triste ou deprimente. Ela evoca uma "emoção de empatia pela possibilidade de esperança", destaca. "Não importa o que acontece com o nosso corpo, nossa alma não pode deixar de valsar."

Estadão
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