Zezé Motta e o racismo na arte: “Pessoas mudavam de canal quando eu aparecia com Marcos Paulo na Globo”
A trajetória de uma grande dama da arte foi permeada por mistura de religiões, combate ao racismo e afirmação de talento
Zezé Motta sorri grandiosamente quando começa a relembrar sua trajetória. Foi ela uma das grandes pioneiras entre as mulheres negras na televisão, ainda nos anos 1970, com papéis de destaques aclamados. Ela foi, também, alvo de um racismo exacerbado e escrachado, mas que não a impediu de continuar. São mais de 50 anos em ação. Zezé está no teatro, na música, na televisão e no cinema. Zezé, aos 73 anos, permanece vívida e a fim de encabeçar, por muito tempo, incontáveis novas histórias na arte.
Zezé ainda era Maria José quando foi matriculada em um colégio interno de base kardecista. Ela tinha seis anos. O pai, espírita, incentivava a conexão com a religião, mas quem tinha real influência sobre a filha era a mãe.
A mãe de Zezé era Testemunha de Jeová, uma das vertentes do protestantismo, religião que a menina da periferia do estado do Rio de Janeiro seguiu até os 12 anos. Nessa idade, tudo mudou: ela deixou o colégio interno, decidiu fazer catequese (porque as amigas de escola fizeram) e começou a descobrir seus reais interesses.
Era só o começo de uma trilha intensa e disruptiva, que abriu alas para as tantas mulheres pretas que vieram a seguir. Em entrevista exclusiva ao Terra NÓS, Zezé relembra papéis que mais a marcaram na extensa carreira de atriz, lamenta o racismo que teve de encarar para se firmar no horário nobre da Globo; descreve o momento em que descobre a conexão com a África quando se torna filha de santo e insiste que a luta antirracista só começou: “É uma luta diária”.
Quando tudo começou
Zezé começou a trabalhar cedo para ajudar com os gastos em casa. A mãe queria que a filha seguisse o ramo da costura, como ela; o pai pendia junto de Zezé para o lado artístico: a dupla passava horas escrevendo canções. Ela conseguiu conciliar o trabalho com o teatro –o curso era aos fins de semana– até deslanchar de vez na arte. Seu trabalho mais primoroso –talvez o de mais apego–, ela conta, foi o filme Xica da Silva (1976), em que interpretava a escravizada. “Até hoje me emociono ao lembrar”, diz.
Xica da Silva e Zezé Motta por alguns momentos se cruzaram. A própria atriz relembra a objetificação que seu corpo sofreu, diz que até mesmo na hora de se relacionar amorosamente com homens, eles fantasiavam a personagem. À revista Raça, ela desenvolve: “A expectativa de todos os parceiros era transar com a Xica da Silva. Já ouvi coisas do tipo: “quando um filme se torna realidade” ou “meus amigos não vão acreditar que eu transei com a Xica”. “Ainda assim, foi um divisor de águas na minha carreira”.
Racismo no horário nobre da Globo
Zezé Motta estreou no horário nobre da Globo como Sônia, personagem que vivia um romance com o ator Marcos Paulo na novela Corpo a Corpo (1984), e enfrentou mais um monte de ataques racistas mesmo em uma época onde não se acessava com tanta facilidade um artista.
“E eu fiquei assustada com o tamanho da repercussão que teve a minha personagem com público. Confesso que foi muito forte pra mim na época, o meu relacionamento com o personagem do saudoso Marcos Paulo não foi bem recebido por parte do público, eles achavam aquilo um absurdo. Tinha gente que comentava assim: “Eu mudo de canal quando você aparece ao lado do Marcos Paulo” e tinha outras pessoas que não acreditavam na veracidade do casal”, conta.
“Foi muito forte ter que vivenciar esse momento e naquela época não existia nem a internet para um direito de resposta como hoje, sabe? Era muito mais intenso, não que hoje não seja, mas a clareza e o respeito eram muito mais travados.”
Desistir, no entanto, nunca passou pela cabeça determinada da doce Zezé. Filha de Oxum-Opará, uma qualidade da orixá das águas doces Oxum misturada à intensidade da orixá do raio e do vento Iansã, ela é como uma tromba d’água. O orixá masculino que rege a cabeça de Zezé é Oxóssi, caçador das matas, e é a eles que ela atribui tamanha persistência. Zezé é a personificação do nado contra a correnteza sendo a própria correnteza.
E o candomblé chegou à sua vida tardiamente. O primeiro contato foi em 1990, quando Zezé interpretou uma ialorixá na minissérie Mãe de Santo. Ela era a zeladora de um terreiro. Se conectou, então, às raízes africanas e abraçou a religião. De “Mãe de Santo”, Zezé virou filha de santo.
“Passei por várias religiões. Comecei como Testemunha de Jeová, ainda criança, como a minha mãe. Por causa do internato, comecei a frequentar a Igreja Católica, entrei para o catecismo, mas, no meio do caminho, desisti. Me grilei com essa história de céu e inferno. Achei aquilo tão esquisito! Preferi ficar com a ideia de reencarnação do espiritismo, religião do meu pai. Anos depois, por intermédio da Lélia Gonzalez e do curso de cultura negra, descobri o candomblé e foi daí que iniciei o processo de conhecimento. Quando vivi a ialorixá, foi como um chamado.”
Realizada full
Com mais de meio século de carreira, Zezé Motta está longe da aposentadoria e, apesar de se dizer totalmente realizada, quer trabalhar muito ainda. Viver, então… “A arte está no meu sangue, corre nas minhas veias. Estou feliz. Sou feliz. Estar ao lado de quem amo e fazendo o que gosto, que é cantar e atuar, é um presente. Vivo esse presente todos os dias”.
Zezé sofreu três abortos espontâneos quando tentou, por três vezes, engravidar. O problema não foi diagnosticado pelos médicos à época, mas eles lhe recomendaram repouso absoluto para evitar uma nova perda gestacional. Zezé compreendeu, então, que parar de trabalhar não era uma possibilidade, e que o repouso de meses seria impossível.
Adotou emocionalmente quatro crianças, seus filhos, que já lhe deram três netos. A juventude, ela conta, nada tem a ver com idade. Zezé é uma mulher jovem aos 78, que vive seu presente e que atribui o amor às pessoas e à profissão o segredo da vida.