A mulher trans árabe que ajuda na fuga de países que perseguem e matam LGBT
Iman Le Caire assumiu como missão ajudar outras pessoas trans a fugir de perseguição, abuso e morte em países do Oriente Médio, já que a pandemia do coronavírus colocou muitas delas em maior perigo.
"Sinto que precisam de uma mãe, precisam de esperança."
Iman Le Caire sorri enquanto analisa a lista de nomes de pessoas trans que ela ajudou a fugir de perseguição durante a pandemia de coronavírus.
A primeira foi Ritaj, uma jovem mulher trans no Iêmen que estava "mental e fisicamente destruída", depois de ser condenada a 100 chibatadas por homossexualidade e ser presa.
De acordo com a lei iemenita, se Ritaj fosse casada na época e fosse considerada culpada de atos homossexuais, ela poderia ter sido apedrejada até a morte.
Como uma mulher trans, que escapou de sua terrível situação no Egito, Iman diz que não podia mais ficar parada enquanto esse sofrimento continuava a portas fechadas.
"Eu já estive lá, passei pela mesma dor. Nossas famílias cospem em nós com a mesma saliva", diz Iman.
Por meses, Ritaj e Iman falaram ao telefone enquanto preparavam os documentos para a fuga de Ritaj. Elas também criaram uma página GoFundMe para arrecadar verba para as taxas legais, com a ajuda de Aliyah, outra ativista mulher trans.
Ritaj sabia que tinha, nas palavras de Iman, que parecer masculina para que ninguém a questionasse durante a primeira etapa de sua fuga ousada - uma viagem de 36 horas de carro e um voo para o Cairo.
De lá, um advogado de imigração voou para ajudar a apresentar seu caso ao consulado francês, o que significava que ela poderia ser enviada com um visto humanitário para a França, onde começou uma nova vida.
"Muitas pessoas LGBT em países árabes estão atualmente presas sem ninguém para ajudá-las", diz Ritaj.
"Muitos são abandonados por suas famílias, não conseguem encontrar trabalho e ficam sem-teto só porque são LGBT. Os governos precisam criar leis para proteger essas pessoas."
Isolamento com família hostil
Ainda existem muitos países onde ser trans - quando a identidade de gênero de uma pessoa é diferente do sexo que teve registrado no nascimento - é fortemente estigmatizado.
A Anistia Internacional advertiu que o clima se tornou particularmente ruim durante a pandemia, com muitas pessoas trans "isoladas com familiares hostis" e sem acesso a cuidados de saúde ou apoio mais amplo.
"A crise sempre foi ruim, mas a pandemia piorou ainda mais. Existem crimes cometidos contra pessoas trans", diz Iman. "Como você pode viver em um país quando sua família e o governo não querem você lá?"
É uma sensação que ela conhece muito bem. Iman cresceu como um menino em uma aldeia rural no Egito, mas por dentro sempre soube que ela era uma mulher. Ela diz que foi insultada por se comportar de maneira feminina, acusada de ter um "demônio feminino" dentro dela.
Ela descreve sua infância como brutal e implacável. Aos oito anos ela foi estuprada por dois anos por alguém próximo à família, ela diz, um segredo aberto que levou a mais agressões sexuais nas mãos de outras pessoas.
A vergonha e a desonra sentidas pela família foram tão grandes, diz ela, que culminaram com uma facada no peito antes de sua irmã intervir e levá-la às pressas para o hospital.
Mais tarde, quando ela fez a transição, foi o nome de sua irmã - Iman - que ela escolheu por gratidão por ter salvado sua vida.
Dançar tornou-se uma forma de combater a ansiedade, e um trabalho no Cairo Opera House inicialmente parecia uma chance para começar de novo.
Apesar de não conseguir reconhecer que era transgênero, Iman tinha um namorado e diz que, por ser uma pessoa LGBTQ de destaque, ela foi perseguida implacavelmente pela polícia sob acusações forjadas.
Com medo por sua vida, ela partiu com um visto de turista para Nova York, onde se candidatou a receber asilo.
Sozinha em uma nova cidade, ela entrou em depressão e começou a usar drogas antes de conhecer seu futuro marido, Jean-Manuel, e fazer a transição física para se tornar uma mulher na casa dos trinta anos.
Despertar político
Depois de passar por tanta coisa, Iman decidiu se manter discreta e se concentrar em seu trabalho como artista performática.
Mas um despertar político veio com a morte de George Floyd em maio de 2020 e os protestos Black Lives Matter. Iman diz que a "masculinidade tóxica" que alimentou os problemas a lembrou da maneira como havia sido tratada no Egito.
"E então de repente a pandemia aconteceu. Eu estava com muito medo. Eu saí para protestar e encontrei minha cura, eles estavam lutando pelas vidas negras e pelas vidas trans".
Algumas semanas depois, Iman foi mobilizada ainda mais pelo suicídio de Sarah Hegazy, uma lésbica de 30 anos que havia sido presa por hastear uma bandeira de arco-íris em um show - parte da repressão implacável do Egito contra os direitos LGBT.
Sarah Hegazy estava morando no Canadá depois de receber asilo, mas havia passado por estresse pós-traumático e depressão depois de ser torturada na prisão, de acordo com relatórios da Anistia Internacional.
"Ela não aguentou. E eu me identifiquei com ela. Tendo estado na prisão no Egito, eu sei o que eles fazem com as pessoas", disse Iman.
Vida trans no Oriente Médio
Por Nada Menzalji - repórter da BBC Arabic
No Oriente Médio, as pessoas LGBTQ + são frequentemente estigmatizadas e sujeitas a assédio e violência com base em sua sexualidade e identidade de gênero, muitas vezes nas mãos de suas próprias famílias.
Para pessoas trans, a vida pode ser particularmente perigosa. Ser trans é frequentemente considerado "imoral", e as pessoas trans são frequentemente consideradas "criminosas ou blasfemadoras".
De acordo com um relatório da Human Rights Watch de 2020, as mulheres transgênero na região são frequentemente vistas como homens gays, e são alvos pelos mesmos motivos e processadas sob as mesmas acusações amplas de "ter relações carnais contra a ordem da natureza" ou "imitar mulheres " A punição para o sexo gay varia de prisão em países como a Síria até a pena de morte em alguns casos no Iêmen e na Arábia Saudita.
A transição também pode ser um desafio para pessoas trans. De acordo com a maioria das legislações árabes, a aprovação de um comitê formado por médicos e clérigos deve ser obtida, mas a cirurgia é considerada apenas para corrigir um defeito de nascença nos órgãos reprodutivos de alguém.
Alguns optam por fazer a transição secretamente, colocando suas vidas em risco em clínicas locais que não atendem aos padrões médicos. Mas mesmo após a transição, obter um documento de identidade que reflita o nome e gênero apropriados de um homem ou mulher trans será impossível na maior parte do mundo árabe.
Protesto nas ruas
Durante as manifestações Black Lives Matter, Iman foi protestar na Marcha de Libertação do Brooklyn, que viu 15 mil pessoas se reunirem em frente ao museu do Brooklyn para exigir segurança para trans negros.
Fotos dela na passeata levaram Ritaj a contatá-la e se tornar seu primeiro caso. Desde então, surgiram muitos outros, principalmente do Oriente Médio, mas também de outros países onde há risco, como a Jamaica.
Iman acabou ingressando em uma organização chamada TransEmigrate, que fornece suporte logístico para aqueles que tentam se mudar para países mais seguros, antes de fundar uma organização irmã, a Trans Asylias, que ajuda pessoas trans perseguidas a se candidatarem a asilo.
Ela dá conselhos, ajuda a verificar suas inscrições para pedido de asilo, mantém o ânimo deles com videochamadas regulares e arrecada dinheiro para a mudança.
Infelizmente, diz Iman, para cada pessoa trans ou não binária que conseguiu deixar seu país, muitas outras ainda vivem com medo da perseguição e da morte.
Seu maior sonho é construir uma comunidade "com belas casas, espaços verdes e médicos, onde todas as pessoas trans e com inconformidade de gênero que enfrentaram todas essas coisas horríveis possam receber tratamento e melhorar, como quando as pessoas cuidaram de mim".
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