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Atraso na regulamentação ajuda a transformar mercado de apostas online em questão de saúde pública no Brasil

O avanço das tecnologias digitais e o crescente acesso à internet fizeram explodir o mercado de apostas esportivas e cassinos online, multiplicando casos de abuso e dependência

18 out 2024 - 10h32
(atualizado às 17h00)
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Com a legalização das apostas esportivas no Brasil pela Lei nº 13.576/2018, o setor de apostas online operou sem regulamentação por quase seis anos. Embora a legislação previsse que o mercado fosse regulamentado em até quatro anos, sucessivos adiamentos atrasaram o processo, gerando desafios que afetam não só o setor, mas também a sociedade, como o aumento de casos de absuo e adicção. A sanção da Lei 14.790/2023 representa a tentativa do governo, enfim, regulamentar o setor. Mas o cenário ainda apresenta desafios consideráveis.

O avanço das tecnologias digitais e o crescente acesso à internet transformaram o cenário das apostas, tornando-as acessíveis 24 horas por dia para qualquer pessoa com um celular ou notebook conectado. Essa evolução eliminou as barreiras físicas e temporais tradicionais, oferecendo uma experiência imediata e constante.

Além de permitir apostas esportivas clássicas antes das partidas, as plataformas online agora oferecem apostas em tempo real, ampliando as possibilidades com milhares de eventos esportivos.

O desenvolvimento tecnológico também facilitou o acesso aos cassinos online, com jogos rápidos, altamente estimulantes e arriscados, atraindo um público cada vez maior.

Além das versões online dos tradicionais caça-níqueis, os slots, que têm no Fortune Tiger, ou "Jogo do Tigrinho", seu exemplo mais famoso e polêmico no Brasil, há uma modalidade mais recente ainda mais aditiva, conhecida como "crash game", que atrai jogadores ao promover apostas em linhas multiplicadoras, que se comportam de forma muito parecida com os gráficos de ações do mercado financeiro. Ao fazer a aposta, o jogador vê a linha subir e multiplicar os ganhos de forma acelerada, até um momento de colapso, o "crash". O conceito da aposta está em esperar até o último momento antes do colapso, para potencializar os ganhos. Ou perder tudo.

Estudos como os conduzidos pela professora Sally Gainsbury, diretora da Gambling Treatment & Research Clinic, da Universidade de Sydney, na Austrália, indicam que o aumento no uso de dispositivos móveis para apostas é impulsionado por essa atual facilidade de acesso e pela oferta diversificada de jogos. E é essa conveniência que também eleva consideravelmente os riscos associados à prática.

Nesse contexto, o Brasil enfrenta uma grande defasagem regulatória, pois o avanço das tecnologias que estimulam as apostas supera a capacidade de implementação de políticas públicas eficazes para mitigar os riscos.

Embora a legalização de 2018 tenha contemplado apenas as apostas esportivas de quota fixa, os sites de apostas rapidamente expandiram suas operações para incluir cassinos online, que agora representam a maior parte da receita do setor, impulsionados por intensa publicidade digital e parcerias com influenciadores. A pandemia de COVID-19 também acelerou a demanda por entretenimento digital, resultando em um aumento expressivo na participação em jogos de apostas online.

Mercado de apostas cresceu 135% em um ano no Brasil

Enquanto o governo federal busca regulamentar o setor de apostas online, ele enfrenta não apenas os desafios de implementar políticas eficazes, mas também de lidar com um mercado que já cresceu de forma expressiva. Nos últimos anos, empresas de apostas realizaram investimentos maciços no futebol, patrocinando quase todos os clubes das principais divisões e criando uma forte associação entre apostas e esporte.

Suas propagandas dominaram estádios, redes sociais e TV com exibições constantes, além de se expandirem para outras modalidades esportivas, utilizando celebridades e atletas em campanhas, o que contribuiu para uma crescente normalização das apostas na sociedade.

Antes da legalização em 2018, cerca de 500 sites de apostas online operavam no país sem qualquer regulamentação ou tributação, com movimentações financeiras significativas no exterior. Com a legalização, o mercado se tornou ainda mais competitivo, com plataformas oferecendo bônus, promoções e depósitos mínimos reduzidos para atrair novos usuários.

Além disso, a popularização de formas de pagamento simplificadas, como o Pix, facilitou ainda mais o acesso, acelerando processos de depósito e saque. Como resultado, mais de 22 milhões de brasileiros realizaram ao menos uma aposta em 2023, e o número de sites ultrapassou 4 mil, com o mercado crescendo 135% entre 2022 e 2023. Estima-se que o setor movimente mais de R$ 20 bilhões por mês, sem que esses valores sejam adequadamente tributados.

Ludopatia: um problema de saúde pública

Segundi a Associação Americana de Psicologia (APA), o Transtorno do Jogo, também conhecido como ludopatia, é classificado tanto na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial de Saúde quanto na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como um transtorno mental que compartilha várias características com outras dependências, como a dependência química.

Estudos de neuroimagem revelaram que o cérebro de pessoas com Transtorno do Jogo apresenta padrões de ativação semelhantes aos observados em indivíduos com dependências de substâncias, especialmente em áreas relacionadas ao controle de impulsos e ao sistema de recompensas, como o córtex pré-frontal e a amígdala.

Segundo Terryan C. Clark, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Aukland, a compulsão e a impulsividade são aspectos centrais desse transtorno, dificultando o controle financeiro e das apostas realizadas, o que aumenta a prevalência de comportamentos de risco entre aqueles que preenchem os critérios clínicos da doença.

Já para Henrietta Bowden-Jones, psiquiatra da Universidade de Cambridge, as consequências do Transtorno do Jogo vão além da saúde mental. O impacto financeiro é grave, com muitos jogadores compulsivos acumulando dívidas consideráveis, perdendo bens e enfrentando rupturas familiares. Além disso, o Transtorno do Jogo apresenta alto índice de ideação suicida, assim como a dependência química.

A falta de regulamentação adequada agrava a situação dos indivíduos com ludopatia, pois não há uma estrutura eficaz de prevenção, suporte e supervisão para mitigar esses impactos. Com a posse do presidente Lula, em 2023, e a urgência de aumentar a arrecadação para enfrentar o déficit fiscal, o governo passou a priorizar a regulamentação das apostas, culminando na sanção da Lei 14.790/2023.

O que diz a nova legislação

A nova legislação abrange tanto os jogos de cassino online quanto as apostas esportivas de quota fixa. No entanto, ao privilegiar os aspectos econômicos e tributários, a lei não incorporou uma abordagem de saúde pública, destinando apenas uma parcela ínfima da arrecadação para o Ministério da Saúde e deixando de estabelecer, até o momento, políticas públicas voltadas para a prevenção e o tratamento da ludopatia.

O tratamento do Transtorno do Jogo envolve uma série de medidas, incluindo a mudança de hábitos diários. A presença de grupos de apoio, como o SOS Jogador e os Jogadores Anônimos, tem se mostrado bastante eficaz no manejo do vício (Black et al., 2010).

Além disso, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é uma das abordagens terapêuticas mais utilizadas, com resultados significativos, ajudando os indivíduos a reestruturar pensamentos disfuncionais sobre o jogo e a desenvolver estratégias para resistir ao impulso de jogar (Toneatto et al., 2008).

Muitas vezes, o Transtorno do Jogo também está associado a comorbidades como depressão e transtornos de ansiedade, que também requerem tratamento (Cowlishaw et al., 2012). No entanto, a percepção mais tolerante em relação às apostas online dificulta o reconhecimento de comportamentos compulsivos, devido à natureza intangível do produto e à falta de estereótipos negativos tradicionalmente ligados ao vício.

Qual caminho seguir?

Para enfrentar os desafios das apostas online, é fundamental adotar uma abordagem de saúde pública que vá além da responsabilidade individual. Isso inclui a implementação de regulamentações que limitem práticas comerciais prejudiciais, como a publicidade enganosa que promove os jogos como fonte de renda alternativa em vez de entretenimento. Além disso, é necessário direcionar parte da arrecadação tributária para programas de prevenção e tratamento, bem como promover a conscientização sobre os riscos do jogo excessivo e facilitar o acesso a ferramentas de controle e bloqueio.

Um aspecto crítico da legislação de apostas no Brasil é a ausência de um mecanismo que permita o bloqueio simultâneo de cadastros em todos os sites. Atualmente, as ferramentas de autoexclusão são específicas para cada plataforma, o que pode gerar uma falsa sensação de segurança, já que o apostador pode facilmente acessar outras plataformas. Assim, embora um usuário se exclua de um site, ainda tem acesso a centenas de outros, facilitando novas perdas. A implementação de um sistema similar ao GAMSTOP, utilizado no Reino Unido, poderia prevenir esses problemas de forma mais eficaz.

É fundamental implementar programas de educação, especialmente em escolas e com adolescentes, para conscientizar a população sobre os riscos do jogo excessivo e as opções de ajuda disponíveis. Esses programas devem alcançar diversos grupos de risco, incluindo jovens, pessoas com dificuldades financeiras e aquelas com histórico de comportamento impulsivo.

A educação deve não apenas alertar sobre os perigos do jogo, mas também desmistificar preconceitos que impedem indivíduos afetados de buscar apoio. O uso de uma linguagem respeitosa, encorajadora e não estigmatizante é fundamental para criar um ambiente em que todos se sintam confortáveis para se identificar e buscar ajuda quando necessário.

As regulamentações também devem considerar os impactos sociais e de saúde associados às apostas, incluindo a capacitação de profissionais da saúde para oferecer suporte adequado a indivíduos em dificuldade. É essencial criar uma estrutura de supervisão robusta que envolva diversos stakeholders, garantindo a aplicação efetiva das regulamentações.

Além disso, a alocação de fundos para pesquisas independentes é necessária para o desenvolvimento de estratégias de intervenção mais eficazes. A colaboração entre os sites de apostas, o governo e os pesquisadores, por meio do compartilhamento de dados sobre os comportamentos dos apostadores, é igualmente crucial. Isso permitirá a formulação de estratégias eficazes para a prevenção e tratamento dos problemas relacionados ao jogo, fornecendo informações valiosas sobre padrões de comportamento e riscos.

Por fim, a criação de um centro nacional de ajuda pode servir como um recurso centralizado para apoio e conscientização, promovendo um ambiente de apostas mais seguro e transparente. Uma abordagem integrada e holística será essencial para proteger o bem-estar da população e garantir a efetividade das políticas de regulamentação, especialmente diante do que o governo federal tem chamado de "epidemia das bets", uma realidade que o Brasil vivencia atualmente, inclusive motivando ações governamentais para o bloqueio de sites que atuam de forma clandestina no país.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Os autores não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que se beneficiaria deste artigo e não revelaram qualquer vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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