Bio é bio e agro é agro: a agricultura em tempos de crise
O atual modelo de agronegócio tende a agravar as crises ambientais e sociais existentes. O futuro da agricultura depende do respeito à diversidade e à adaptabilidade dos sistemas produtivos.
A agricultura moderna representa um dos mais significativos processos de transformação dos sistemas biológicos naturais pela ação humana. Diferentemente de concepções ingênuas que a consideram simplesmente como um método de produção alimentar, a agricultura configura-se como um complexo sistema de intervenção, modificação e reconstrução de ecossistemas inteiros, com profundas implicações evolutivas, ecológicas e econômicas.
Os sistemas agrícolas contemporâneos manifestam-se como artefatos tecnológicos altamente complexos, nos quais a interação entre componentes biológicos e intervenções humanas produz paisagens completamente artificializadas, que representam uma reconfiguração fundamental das dinâmicas evolutivas e ecológicas originais.
A trajetória agrícola da humanidade pode ser compreendida como um progressivo processo de deslocamento das dinâmicas naturais. Nas civilizações pré-industriais, a agricultura mantinha relações mais orgânicas com os ecossistemas. Os agricultores operavam como parte de sistemas complexos, com práticas que respeitavam ciclos naturais de regeneração e interdependência. A diversidade era não apenas tolerada, mas fundamental para a resiliência dos sistemas produtivos.
A Revolução Verde, ocorrida entre 1950 e 1970, representou um marco fundamental nesta transformação, que desencadeou um grande debate sobre o uso de pesticidas químicos, o papel da ciência e os limites do progresso tecnológico.
Caracterizada pela introdução massiva de tecnologias químicas, genéticas e mecânicas, esta revolução significou uma ruptura definitiva com os modelos agrícolas tradicionais. A agricultura deixou de ser um processo apenas biológico para se tornar um processo tecnológico de produção agrícola.
Os sistemas biológicos naturais são caracterizados por complexas redes de interdependência, onde cada organismo desempenha funções múltiplas e complementares. A biodiversidade não é um acidente, mas um princípio organizativo fundamental que garante resiliência e adaptabilidade.
Em contraposição, os sistemas agrícolas contemporâneos são marcados pela simplificação radical. No Brasil, especialmente, o modelo do agronegócio é caracterizado pelo controle, por um grupo pequeno de agentes do setor agropecuário, de extensas áreas de terra e que utilizam produção altamente mecanizada e dependente de insumos químicos e biológicos para produzir commodities voltadas principalmente à exportação.
Monoculturas geneticamente homogêneas e com biodiversidade empobrecidíssima substituem ecossistemas complexos. A diversidade é substituída pela padronização, a resiliência pela fragilidade, a adaptabilidade pelo controle tecnológico.
Com essas características, percebe-se que o agronegócio brasileiro não pode ser considerado um modelo de bioeconomia, entendida como solução para as múltiplas crises de biodiversidade, clima e degradação do solo, que leve a ganhos socioambientais. Pelo contrário, representa seu oposto fundamental, uma estratégia de apropriação e destruição de sistemas biológicos. Suas características o definem como modelo radicalmente antagônico aos princípios biológicos.
A uniformização genética se manifesta através da redução da diversidade a alguns poucos cultivares, destruição de variedades locais e tradicionais, e homogeneização que fragiliza sistemas ecológicos. A dependência tecnológica se evidencia pela subordinação de processos biológicos a pacotes tecnológicos, controle corporativo de sementes e insumos, e eliminação de saberes tradicionais e autonomia produtiva. A degradação sistêmica se materializa na destruição de solos, contaminação de recursos hídricos, eliminação de biodiversidade e ruptura de ciclos ecológicos fundamentais.
Na Amazônia, o desenvolvimento do agronegócio envolve estratégias sofisticadas de legitimação, buscando inserir práticas predatórias, dentro de um suposto conceito de bioeconomia. Suas táticas incluem a ressignificação conceitual de desmatamento como "manejo da terra", a apresentação de monoculturas como "sistemas produtivos sustentáveis", a expansão agrícola com conversão e degradação da vegetação nativa como "desenvolvimento econômico", e o uso de certificações ambientais como mecanismo de neutralização de impactos.
Estas estratégias representam um "cavalo de troia" dentro dos debates sobre sustentabilidade, diluindo conceitos ecológicos e neutralizando críticas ambientais.
Se o atual modelo de agronegócio for mantido, pode agravar as múltiplas crises ambientais e sociais já existentes. Cenários futuros indicam uma expansão significativa da área destinada ao setor, com a ampliação de áreas de pastagens e cultivo de grãos na Amazônia, com enorme pressão sobre terras públicas não destinadas, unidades de conservação e terras indígenas, gerando impactos socioambientais negativos.
Os esforços para aumentar a produção de bioenergia, também, podem resultar em mais desmatamento e deslocamento de comunidades locais, além de gerar prejuízos adicionais à biodiversidade e mais degradação de florestas.
Portanto, a distinção entre bio e agro não é meramente semântica - é fundamentalmente ética, ecológica e evolutiva. O futuro da agricultura brasileira não pode se contentar com a mera coexistência destes modelos antagônicos ou mesmo com a apropriação da abordagem de bioeconomia como estratégia para obter mais lucros em um contexto de crises ambientais globais. É importante reconhecer que a sustentabilidade não é apenas um objetivo desejável, mas uma necessidade urgente para a sobrevivência dos próprios sistemas produtivos.
Os desafios contemporâneos exigem modelos que superem a dicotomia entre sistemas econômicos e biológicos. Não se trata de romantizar modelos tradicionais, mas de desenvolver abordagens que reconheçam a complexidade e a importância dos sistemas naturais na produção agrícola. Sistemas que respeitem a diversidade, que considerem a multiplicidade de agentes e dinâmicas presentes nos ecossistemas.
Ima Vieira não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.