Educadora lembra tragédia do Ônibus 174, 15 anos depois
"É grande a possibilidade de que, caso haja redução da maioridade penal e menores sejam postos em cadeias, se tornem o Sandro de amanhã”,diz
“São muito poucos os menores infratores envolvidos em crimes mais violentos. É grande a possibilidade de que, caso haja redução da maioridade penal e eles sejam colocados em cadeias, se tornem o Sandro de amanhã”.
A declaração é da artista plástica carioca Yvonne Bezerra de Mello, de 68 anos. O Sandro a que ela se refere é Sandro do Nascimento, que há 15 anos sequestrou o ônibus que fazia a linha Gávea-Central, na capital fluminense, em uma ação que terminou com o assassinato da refém, a professora Geísa Firmo Gonçalves e dele próprio.
Sobrevivente da chacina da Candelária, no centro do Rio, em 1993 – quando oito de 72 crianças de rua que dormiam à frente da igreja foram assassinadas –, Sandro tinha oito anos quando viu a mãe ser assassinada e morreu asfixiado por policiais militares ao final das mais de cinco horas de sequestro.
Yvonne atuava junto às crianças e aos adolescentes da Candelária e foi a primeira a chegar ao local na noite da chacina. Anos depois, fundou o projeto Uerê, que, com doações e apoio de empresas, busca educar crianças e adolescentes entre seis e 18 anos que têm bloqueios cognitivos e emocionais causados por situações de trauma e violência. O projeto é sediado no Complexo da Maré (zona norte do Rio) e exige que o público atendido esteja obrigatoriamente matriculado também em colégios públicos da comunidade.
Para Yvonne, as décadas de experiência de trabalho com menores de 18 anos em situação de risco a subsidiam a discordar dos argumentos pró-redução da maioridade.
“A avaliação que faço é que não precisa mudar o que está no Estatuto da Criança e do Adolescente; bastaria que, para crimes hediondos, houvesse uma pena maior que o máximo de três anos de reclusão vigente. Seria uma resposta muito boa à sociedade: esses meninos não podem achar que podem fazer o que o que querem e ficar três anos, no máximo, reclusos”, avalia Yvonne. “Uma vez que se dá possibilidade ao adolescente de ele votar aos 16 anos, tem que se fazer ver que assassinar pessoas não é algo que a gente vá permitir. Mas é uma minoria que comete, de fato, crimes hediondos”, ressalvou.
Para a educadora, as tentativas de se levar adiante a redução, por parte de parlamentares, gera uma sensação de que “não se sabe muito bem o que faz” a respeito do tema. “Quando o ECA foi implementado, não havia ainda a denominação de crime hediondo para estabelecimento de pena. Então, há que se aumentar a pena para isso, porque é impossível hoje em dia colocar esses jovens no sistema prisional: teria que haver uma dotação orçamentária enorme, e esses crimes de natureza hedionda, por menores, são muito poucos: 0,1% dos menores infratores estão envolvidos. Ainda é muito, mas longe de ser a maioria dos casos”, destaca.
Yvonne considera “emblemático” o caso de Sandro para definir que a desestrutura familiar é o fator que, em boa parte das vezes, torna crianças e adolescentes mais vulneráveis às situações de violência.
“É emblemático o caso dele: tinha uma vida normal em uma favela de Niterói (RJ), até que um belo dia a mãe foi assassinada a facadas, na sua frente. Naquele momento, o Sandro não teve ajuda do Estado – nenhuma assistência de saúde, psicológica; foi para a casa de uma tia, mas ninguém sabia como agir, não conhecia o pai... Houve uma omissão do Estado em dar àquele menino uma atenção, e isso acontece todos os dias. Quando essa criança vai para a rua, é porque algo acontece – e ali ele começa a roubar, e ali esse processo de desintegração é total. Teria de ter como responsabilizar os pais, também: grande parte desses menores vão para as ruas porque pai ou mãe manda, para pegar dinheiro pedindo ou vendendo bala. O resultado é esse q nós vemos. O resultado não é bom”, sentencia.
A educadora disse temer que a presença de menores de idade em situação de rua que ela afirma ser “cada vez maior, de um ano para cá” desencadeie uma reação nada positiva: “Meu medo é que voltem os grupos de extermínio desse público, como tinha na década de 1990, os chamados ‘justiceiros’. Dá para fazer algo por essas crianças e adolescentes: é uma questão realmente de políticas públicas. Só que, enquanto isso ficar a cargo de políticos, e não serem valorizadas pessoas com capacitação para a tarefa, nada vai mudar”.
Relembre o caso
O sequestro do ônibus 174 aconteceu pouco depois das 14h do dia 12 de junho de 2000 no Jardim Botânico, área nobre da zona sul carioca. Era uma segunda-feira, e o ônibus havia saído do ponto final, próximo da favela da Rocinha, onde morava a professora cearense Geísa, então com 20 anos.
Sandro deu voz de assalto quando percebeu que o veículo era interceptado por PMs – um passageiro sinalizara ao perceber que o rapaz portava uma arma na cintura. Ao parar o ônibus, motorista e cobrador fugiram, mas alguns passageiros ficaram reféns.
A situação, transmitida durante horas por TVs nacionais e com repercussão internacional, terminou quando Sandro desceu do ônibus com Geísa de escudo. Um PM do Bope (Batalhao de Operações Especiais da PM carioca) tentou atirar no rapaz, mas acertou o queixo da professora. Assustado, Sandro caiu ao chão coma refém e acertou três tiros nas costas dela. Depois de uma tentativa de linchamento, por populares, o sequestrador foi preso e levado em um camburão – mas chegaria morto por asfixia em um hospital.
À época, três PMs do Bope foram acusados pela morte do sequestrador, mas acabaram absolvidos em júri popular, no ano de 2002, por quatro votos a três. O capitão Ricardo de Souza Soares e os soldados Flávio do Val Dias e Márcio de Araújo David foram considerados inocentes.