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A briga de Doria com ONG de herdeiros do Itaú por privatizações de presídios de SP

O governador de São Paulo entrou em conflito jurídico com a ONG Humanitas360, comandada por membro de uma das famílias que controlam o banco Itaú; organização geria cooperativa de presas, mas trabalho foi proibido pela gestão Doria.

23 out 2019 - 17h04
(atualizado em 24/10/2019 às 13h30)
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O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), entrou em disputa com a ONG Humanitas360
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), entrou em disputa com a ONG Humanitas360
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil / BBC News Brasil

O governador de São Paulo, o tucano João Doria, entrou em conflito com a ONG Humanitas360, organização sem fins lucrativos comandada por Patrícia Villela Marino. A advogada e empresária é integrante de uma das três famílias que controlam o banco Itaú.

Há duas semanas, a gestão tucana proibiu a ONG de Patrícia Villela de entrar em presídios onde a entidade dava oficinas e geria uma cooperativa formada por presas. Em entrevista à BBC News Brasil, a empresária afirmou que o governo Doria tem feito "pouco caso" e apresenta um "comportamento violento" em relação a sua entidade.

Patrícia Villela é casada com Ricardo Villela Marino, presidente do Conselho de Administração do Itaú para a América Latina.

Junto aos Moreira Salles e os Setúbal, a família Villela é uma das controladoras do banco. Porém, os Villela são os maiores acionistas da empresa, com 22,53% das ações. Segundo a revista Exame, essa fatia da companhia valia R$ 22,7 bilhões em abril do ano passado.

Segundo o coronel Henrique Neto, diretor da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap), órgão do governo estadual, a proibição foi determinada porque a operação da Humanitas não se enquadrava na lei, pois presos em regime fechado não poderiam participar de cooperativas.

A "briga", que se estende desde o início do ano, teve um novo capítulo na semana passada: depois uma ação da qual a Humanitas360 fez parte, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE) barrou uma licitação de Doria que previa a concessão de quatro presídios estaduais à iniciativa privada, em um modelo de gestão compartilhada.

Uma semana antes, a própria Justiça havia suspendido o certame em virtude de outra contestação, dessa vez da Defensoria Pública de São Paulo. Dias depois, porém, o presidente do Tribunal de Justiça, Manoel de Queiroz Pereira Calças, havia cassado a liminar e liberado a concorrência.

Com o recente revés no TCE, Doria decidiu cancelar a audiência em que o governo receberia propostas de empresas interessadas em controlar os presídios. A privatização de parte do sistema carcerário paulista foi uma das principais promessas de campanha do tucano na área de segurança pública.

Ele também afirmou, na campanha, que "todos os presos" de São Paulo iriam trabalhar "para pagar sua dívida com a sociedade."

Ao lado de um grupo de advogados, a Humanitas360 fez uma série de questionamentos ao projeto. Mas o imbróglio jurídico sobre as privatizações não foi a primeira batalha entre a ONG de Patrícia Villela e o governo Doria.

Patrícia Villela Marino, de uma das famílias que controlam o Itaú, comanda a ONG Humanitas360, que atua em presídios
Patrícia Villela Marino, de uma das famílias que controlam o Itaú, comanda a ONG Humanitas360, que atua em presídios
Foto: Luiza Matravolgyi/H360 / BBC News Brasil

Cooperativa de presas

A Humanitas360 administrava a cooperativa Lili, que reunia cerca de 40 detentas no presídio feminino Tremembé 2, no interior. Além de assistirem a oficinas de arte e empreendedorismo, as presas produziam artesanato e produtos de costura, que depois eram vendidos fora da prisão.

O valor arrecadado com as vendas era dividido entre as cooperadas. Além disso, ela tinham um benefício de redução de pena enquanto trabalhavam na cadeia.

O projeto em Tremembé foi inspirado na primeira e, até pouco tempo atrás, única cooperativa de presidiárias do país, em Ananindeua, região metropolitana de Belém. Iniciativas parecidas são raras no Brasil, que tem 42 mil mulheres presas.

Atualmente, a ONG está implantando outra cooperativa de presos em uma detenção no Maranhão em uma parceria com o governo do Estado.

A organização, que tem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como conselheiro, atua em diversos países das Américas "para diminuir a violência e melhorar a qualidade de vida da população", segundo uma descrição em seu site.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional relativos a 2016, últimos números disponíveis, apontam que o país tinha 726 mil detentos, a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos.

Em São Paulo, o projeto nasceu depois de um acordo entre a ONG, a Justiça e o governo do Estado, ainda durante a gestão Geraldo Alckmin (PSDB). No lançamento da cooperativa, o governo se comprometeu a comprar a primeira fornada de criações das detentas, embora isso nunca tenha acontecido.

Para a empresária, a cooperativa ajudava as presas a encontrar um "caminho dentro e fora da prisão", principalmente em um país que oferece poucas oportunidades para egressos do sistema carcerário.

"O ambiente da cooperativa passou a significá-las. Elas encontraram uma causa, um propósito, uma rotina, uma maneira de ocupar sua cabeça dentro da prisão. Elas se encontraram e sabiam que aquele negócio era delas", diz Villela à BBC News Brasil.

Em junho deste ano, no entanto, a Humanitas360 foi informada que o governo do Estado decidiu interromper as atividades da cooperativa. Segundo a ONG, os produtos feitos no presídio não puderam mais ser vendidos fora do local — as presas também perderam o direito à redução de pena pelo trabalho, ainda de acordo com a organização.

"Nunca nos explicaram o motivo da paralisação. Questionamos várias vezes (o governo), mas nunca nos responderam", diz Patrícia Villela. "Acredito que essa punição não aconteceu por causa de uma falta disciplinar, não veio por má atitude nossa ou das presas. Ela veio porque o negócio se provou dar certo, porque houve um retorno financeiro e uma transformação de atitude das presas."

Fora do eixo

Para o coronel Henrique Neto, o modelo de cooperativa proposto pela Humanitas360 não se encaixa na legislação. "Não sei que tipo de acordo foi feito com a gestão anterior, mas constatamos que presos em regime fechado não podem participar de cooperativas."

Segundo ele, a Funap ofereceu um modelo em que as presas participariam de oficinas dadas pela Humanitas360 e, depois do cumprimento das penas, seriam livres para participar da cooperativa como qualquer pessoa. "Mas o Humanitas nunca aceitou nossos termos. Eles sempre querem fazer do jeito deles, passando por cima da legislação", explica.

"A Humanitas trouxe uma cooperativa que fazia artesanato. Hoje, nós oferecemos um trabalho para as presas que trazem, digamos, mais equilíbrio financeiro para elas. Pelo que sei, as presas nunca receberam nada (da Humanitas)", diz Neto.

A lei de execuções penais prevê trabalho para presos, embora não possa existir vínculo pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ou seja, depois do serviço cumprido na prisão, as empresas não são obrigadas a contratar o egresso nem pagar qualquer benefício. E o salário não pode ser inferior a 3/4 de um salário mínimo.

A Humanitas360 refuta o argumento da Funap, dizendo que a cooperativa está respaldada pela lei, pois foi admitida na Junta Comercial do Estado de São Paulo, órgão "que detém a atribuição de admitir a conveniência empresarial do registro".

A organização também afirma que as presas cooperadas receberam duas vezes valores relativos a comercialização de produtos. "Os demais repasses seguem sendo liquidados oportunamente quando elas saem do cárcere", alega a ONG.

Proibição

O material produzido pelas presas será vendido em lojas fora da cadeia
O material produzido pelas presas será vendido em lojas fora da cadeia
Foto: BBC News Brasil

Há duas semanas, diz Patrícia Villela, a direção do presídio Tremembé 2 informou que funcionários da Humanitas360 não poderiam mais entrar no local. "Só me deixaram entrar para me despedir das presas e informar que a cooperativa não poderia mais funcionar ali", afirma.

A empresária conta que se encontrou quatro vezes com Doria para tratar da situação da cooperativa. "Fui a eventos inclusive fora do país para falar com ele", diz Villela. Ela conta que o tucano sempre desconversou e pediu que o assunto fosse tratado com outros membros da gestão, como o secretário de Administração Penitenciária, o coronel Nivaldo Cesar Restivo.

"Na minha última conversa com o governador, ele me disse que não gostaria de se envolver com assuntos de segurança pública. Por isso que eu digo que o pouco caso é muito grande. O governador olhar para minha cara e dizer isso é quase um deboche. Existe um comportamento de violência (da gestão Doria) contra nossa organização e nossos valores, contra aqueles que nós representamos."

Questionada se é amiga de Doria, Patrícia respondeu que, entre eles, existe apenas uma "amizade cívica".

Na quinta passada (17/10), em um evento na sede do governo paulista, a BBC News Brasil perguntou a Doria sobre as críticas da empresária a ele e à gestão. Ele se negou a responder à reportagem: "Não vou falar sobre isso. Ela é minha amiga".

Privatização dos presídios paulistas

A gestão Doria lançou um edital para ceder a administração de quatro presídios estaduais à iniciativa privada, o que acabou se tornando o mais recente capítulo da briga do governo paulista com a Humanitas360, de Patrícia Villela.

O projeto prevê repasses do Estado para que as empresas ficassem responsáveis por administrar serviços internos das detenções, como alimentação, fiscalização das visitas, cuidados médicos, entre outros. O Estado iria manter o controle de guaritas e da segurança externa.

A cooperativa das presas havia sido autorizada pela Justiça e pelo governo do Estado de São Paulo
A cooperativa das presas havia sido autorizada pela Justiça e pelo governo do Estado de São Paulo
Foto: BBC News Brasil

Para a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), a concessão da operação de presídios buscava "modernizar" e "ampliar" o sistema, além de "oferecer melhores condições de encarceramento e melhorar os serviços realizados e oferecidos para os presos."

Por outro lado, a Defensoria Pública de São Paulo, junto a ONGs de defesa dos direitos humanos, contestou a licitação na Justiça, alegando uma série de problemas.

Um dos pontos na ação diz respeito ao valor que cada preso custaria aos cofres públicos. "Hoje, o Estado gasta R$ 1.500 por detento. Pelo edital, o governo gastaria cerca de R$ 4.500 por pessoa. Qual seria a vantagem de aumentar os custos?", questiona o defensor Thiago de Luna Cury, coordenador do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de SP.

Já o governo Doria diz ser "prematuro" apontar um valor por preso, pois esse ponto seria analisado quando as propostas das empresas fossem abertas.

Para Cury, a privatização de presídios também "é inconstitucional e contraria resoluções internacionais, pois delega a empresas privadas o poder de polícia e tutela de pessoas que cumprem penas".

"O edital prevê que a empresa controle o presídio, faça contagem dos presos, mantenha os presos na cela, organize as visitas. Para nós, está caracterizado poder de polícia.", diz o defensor. "Além disso, um ente particular não pode restringir a liberdade de outro particular. O preso não é um consumidor de um produto."

Outro fator de críticas é a autorização para que os presídios sob gestão da iniciativa privada pudessem operar acima da capacidade de lotação. Segundo o projeto, a unidade poderia funcionar com até 16,7% mais presos do que sua capacidade. "Se o argumento é melhorar o sistema, por que você autoriza a superlotação?", questiona Cury.

A gestão Doria afirmou que esse excedente não comprometeria a segurança das unidades.

Inicialmente, a Justiça acatou a ação da Defesoria, suspendendo a licitação em caráter liminar. Porém, o Tribunal de Justiça autorizou a sequência do certame em outra decisão.

A cooperativa Lili funcionava na cadeia feminina de Tremembé 2
A cooperativa Lili funcionava na cadeia feminina de Tremembé 2
Foto: BBC News Brasil

Foi neste ponto que entrou a Humanitas360. A ONG participou de outra ação, proposta inicialmente por uma empresa de terceirização, dessa vez no Tribunal de Contas do Estado.

A entidade questionou pontos burocráticos da licitação, como ausência de audiências públicas, aumento dos custos por presos e problemas jurídicos relativos à subcontratação de serviços por parte das empresas vencedoras.

"O enfrentamento nunca foi nossa primeira opção, mas, depois de tudo que passamos, vimos que esse edital vai contra tudo o que a Humanitas está fazendo. Por isso entramos na Justiça", diz Villela.

"Não somos contra privatização, mas não concordamos com a maneira que está sendo feita (pelo governo de SP), com uma série de problemas processuais. Gostaria que alguém me mostrasse algum exemplo de privatização de presídios que deu certo. Não conheço nenhum", diz a empresária.

Por ora, a licitação está suspensa pelo Tribunal de Contas, que acatou o pedido da Humanitas. O governo vai recorrer da decisão.

Nota do Instituto Humanitas360, enviada após a publicação desta reportagem:

"O Instituto Humanitas360 informa que, diferentemente do exposto na reportagem, não há qualquer relação entre seus projetos e ações e o Banco Itaú. O Humanitas360 é uma organização autônoma, sem fins lucrativos, que trabalha pela redução da violência, a transparência e o respeito aos direitos humanos na América Latina. As divergências entre o instituto e o Governo do Estado se concentram nas questões relativas a sua área de atuação no estado, ou seja, o sistema carcerário. Lamentamos essa associação equivocada, que não contribui para um debate transparente e construtivo sobre causas tão importantes pelas quais temos trabalhado nos últimos 5 anos."

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