A complexa logística de apoio à população da Amazônia no combate à pandemia de covid-19
Primeira região do Brasil a entrar ter seu sistema de saúde em colapso na pandemia, a Amazônia conta com ajuda de instituições sociais e ambientais — mas os desafios para alcançar as comunidades mais isoladas, que já são enormes em épocas normais, dobraram.
Em meio à pandemia de covid-19, o barco hospital Abaré, clínica móvel que faz atendimento ao longo do rio Tapajós, no Pará, estava mais ativo do que nunca.
Em uma das mais recentes viagens, dezenas de pessoas já haviam carregado o barco com toneladas de kits de limpeza que seriam distribuídos para comunidades ribeirinhas e indígenas. Criado pelo projeto Saúde e Alegria, hoje o barco é propriedade da Universidade Federal do Pará, a quem o projeto ajuda na administração do barco.
A tripulação estava a postos para deixar Santarém, mas, por causa da pandemia, faltava uma última medida: toda a tripulação precisava passar por testes rápidos de covid-19, para não correr o risco de levar a doença às comunidades atendidas.
A expectativa era que os testes dessem negativo, já que ninguém tinha sintomas aparentes. Mas, na última hora, o projeto descobriu que, de 11 tripulantes, 8 estavam com coronavírus.
Todos tiveram que desembarcar e ficar em isolamento, enquanto o pessoal do projeto corria para fazer toda a sanitização do barco e dos equipamentos e para encontrar outra equipe para tripular a embarcação e tentar manter a agenda de entregas, conta Caetano Scannavino, coordenador do Saúde e Alegria.
Levar atendimento médico e suprimentos às comunidades ribeirinhas e indígenas ao longo do rio Tapajós, no Pará, já não é uma tarefa fácil em épocas normais. Durante a pandemia de covid-19, o desafio é dobrado.
"Uma das coisas mais desafiantes se tratando de Amazônia e fazer a coisa chegar lá no interior do interior", diz Scannavino.
Fazer a distribuição de kits de limpeza sem gerar aglomeração não é fácil. Uma série de protocolos foram estabelecidos, como deixar os suprimentos na entrada das comunidades — com as próprias pessoas do local fazendo a distribuição.
Nas datas combinadas com antecedência, líderes das comunidades ficavam na beira do rio de madrugada esperando o barco chegar.
Um dos principais problemas causados pelo atraso devido à contaminação da equipe é que, sem sinal de celular e internet na região, era impossível avisar algumas das comunidades — o dia amanheceria, as pessoas ficariam esperando, mas o barco não chegaria.
Com o acionamento de muitos contatos e pedidos de ajuda, o projeto conseguiu substituir a tripulação e fazer as entregas, ainda que com atraso.
"Perrengues como esse são a nossa vida", conta Adriana Pontes, administradora do Saúde e Alegria. "É uma dificuldade muito grande, um desafio para a gente, ter que dar conta de tudo isso. Às vezes são três operações enormes de logística em um dia só."
'Areiões' e baixo nível de água nos rios
Na pandemia, ante o objetivo de levar equipamentos de saúde aos locais mais remotos, onde não há UTIs e há pouca estrutura de saúde, há três principais desafios.
O primeiro é fazer os equipamentos chegarem a grandes centros, como Santarém. Boa parte do material vem de locais como São Paulo (como as cartilhas educativas) e alguns até foram importados. No início da pandemia, quando os voos estavam todos cancelados, essa dificuldade foi ainda maior.
"Contamos com a boa vontade de companhias aéreas como a Gol e de empresas como a Natura, que emprestaram caminhões. Também pegamos carona com o Exército", conta Scannavino.
O segundo desafio é levar de polos como Santarém para as aldeias e comunidades.
O Saúde e Alegria a ajudou a montar dois laboratórios remotos em aldeias munduruku e a distribuir 300 equipamentos de suporte à respiração montados a partir de máscaras de mergulho. Onde o transporte normalmente é feito com barcos e pequenas lanchas, levar equipamentos de suporte à respiração e laboratórios inteiros é um trabalho complexo.
A fundação Fundação Amazônia Sustentável (FAS), que nesta semana lançou uma série de vídeos no YouTube sobre as expedições de prevenção e enfrentamento à covid-19, levou uma série de equipamentos e kits de limpeza e alimentação para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma. São oito horas de viagem de barco para chegar à reserva, mas mesmo de barco o acesso às comunidades não é garantido.
Isso porque no meio do ano, os níveis dos rios na Amazônia estão mais baixos, o que cria um desafio adicional para o transporte, explica Valcléia Solidade, superintendente de Desenvolvimento Sustentável da FAS. Ou seja, para chegar às comunidades mais distantes é preciso transferir tudo para canoas e pequenas lanchas.
E nem tudo é feito por rio. Para chegar à comunidade indígena de Montanha e Mongabal, no oeste do Pará, "são três dias na estrada, e muitas vezes os caminhões atolam no 'areião' (bolsões de areia seca)", conta Adriana Pontes, da Saúde e Alegria. "Em agosto um caminhão ficou horas atolado no meio do caminho", conta Pontes.
Quando isso acontece, é preciso descer e procurar grandes folhas de árvores e palmeiras que possam ser colocadas embaixo do carros e caminhões para que eles consigam sair.
Se a temporada é de chuvas, a situação não melhora: o que era um areião vira uma poça enorme de lama.
"O terceiro grande desafio, que agora já melhorou, mas foi muito difícil no começo, foi adquirir insumos que começaram a faltar", conta Scannavino.
Além dos kits de limpeza e alimentação, o projeto de Sacannavino também distribui outros suprimentos necessários em comunidades mais afastadas. Para os índios mundurukus em Jacareacanga, no extremo sudoeste do Pará, eles mandam material de pesca, como varas de pescar. O material vai de caminhão para a cidade de Itaituba, depois de rabeta (lancha pequena com motor) para a comunidade.
Projetos que fornecem esse tipo de equipamento e garantem "soberania" alimentar às comunidades são uma das prioridades de entidades em tempos normais, e durante a pandemia um dos desafios foi manter esse material chegando.
A entidade internacional Amazon Watch, através do fundo Amazon Defenders Fund (ADF), está apoiando justamente projetos assim: que possibilitem à comunidade a compra de materiais de pesca e agricultura, além de doação sementes orgânicas e construção de poços de água. Foram mais de 10 mil indígenas apoiados desde o início da pandemia.
União e apoio mútuo
Para enfrentar as dificuldades logísticas, projetos como o Saúde e Alegria e entidades como os Expedicionários da Saúde e o Greenpeace se unem e se ajudam mutuamente.
"Também mantemos contato e contamos com o apoio dos funcionários da Secretaria de Saúde Indígena que estão na ponta, que estão nas comunidades", conta Scannavino.
"Tentamos dar um suporte direto ao sistema de saúde. A Amazônia foi o primeiro lugar a colapsar no Brasil por causa da pandemia justamente por falta de estrutura, por necessidade de atendimento acima do que a estrutura comporta."
Dezenas de grupos com o interesse de ajudar a população da Amazônia em meio à crise de saúde pública — do Saúde e Alegria à entidade internacional Amazon Watch —contaram com o apoio da mesma entidade: os Expedicionários da Saúde.
"Trabalhamos na Amazônia há 17 anos, então já conhecemos todos os agentes, os parceiros locais, líderes comunitários, o pessoal do ISA (Instituto Socio-Ambiental)", conta Márcia Abdala, da coordenação dos Expedicionários. A instituição médica montou 12 enfermarias de campanha no alto Rio Negro, logo no início da pandemia, com a organização inteira feita a partir da Campinas, no interior de São Paulo.
Como o pessoal da ONG em Campinas não podia viajar por causa da pandemia, contou com voluntários para fazer a logística em diversas paradas até o destino final nas comunidades indígenas. As cargas foram para Manaus em aviões da Azul, e também contaram com caronas nos aviões da Força Aérea e do Greenpeace. Depois foram de barcos para São Gabriel da Cachoeira e de lá para as comunidades.
Para treinar os profissionais de saúde locais, gravações de cursos de capacitação foram feitas e colocadas em pendrives — já que muitos locais não contam com internet.
As enfermarias foram entregues completas, com tudo já pensado para cada localidade. "Tem muita dificuldade de acesso, então não adianta mandar o concentrador de oxigênio, que precisa de tomada, se o local não tem energia. A falta de um único prego pode impossibilitar toda uma operação", conta Abdala. "Então a gente já manda gerador, alicate, fio, tomada, rede, tudo o que vai precisar."
Os concentradores de oxigênio são essenciais, explica a Amazon Watch, que levou 40 concentradores juntamente com o Greenpeace os Expedicionários da Saúde aos mundurukus. "Esses equipamentos ajudam a amenizar os sintomas mais graves de crises respiratórias, evitando assim que os indígenas se desloquem até os grandes centros e fiquem expostos à contaminação", diz a Amazon Watch.
É preciso entender a cultura e as necessidades de cada local também. A maioria das comunidades indígenas recebeu redes, mas povos do grupo je (como kaiapós e xavantes) não dormem em redes, então foram enviadas macas.
"A gente já tinha um projeto de logística pronto, e abrimos para todos, que foram se replicando pela Amazônia. É uma parceria de ajuda humanitária", conta Márcia.