A disputa em Itaipu que quase levou a impeachment no Paraguai e preocupa o governo Bolsonaro
Acordo que levaria a aumento do custo da energia para consumidores paraguaios foi cancelado para preservar presidente aliado de Bolsonaro.
O presidente paraguaio, Mario Abdo, enfrentou uma ameaça real de impeachment depois que um acordo assinado em maio por seu governo com o Brasil sobre a energia consumida da usina de Itaipu gerou uma enorme revolta na população do seu país.
O acordo, que foi abandonado nesta quinta-feira pelo Paraguai para esfriar a crise política, implicaria em aumento do custo da energia consumida pelos paraguaios, favorecendo o Brasil.
Enquanto no Paraguai o acordo fechado por Abdo é visto como uma traição ao país, o setor energético brasileiro afirma que a mudança acordada com o governo de Jair Bolsonaro buscava na verdade corrigir uma "artimanha" que vinha sendo usada pelos paraguaios para pagar menos do que deviam pela energia de Itaipu - usina binacional construída no Rio Paraná, que corta as duas nações.
"O Paraguai não tem seguido as regras do Tratado de Itaipu e, por isso, tem pagado menos do que deve. Esse acordo buscava corrigir isso, mas é condescendente, pois não cobrava o que os paraguaios pagaram a menos no passado", disse à BBC News Brasil o presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales.
Análise do Acende Brasil (centro de pesquisa focado no setor energético) a partir do balanço financeiro de Itaipu mostra que, em 2018, o custo médio da energia de Itaipu consumida no Brasil ficou em US$ 41,45 por megawatt-hora (MWh), enquanto no Paraguai foi de US$ 26,16/MWh.
A diferença, afirma Sales, se deve em parte a regras favoráveis ao Paraguai no tratado e, em outra, à "artimanha" usada para burlar o acordo.
Segundo o jornal paraguaio Ultima Hora, os novos termos acordados em maio representariam um custo total extra de mais US$ 200 milhões de dólares entre 2019 e 2022 - valor que representa 50% do que o Paraguai pagou à Itaipu no ano passado (US$ 394 milhões). Já o Brasil pagou US$ 3,35 bilhões em 2018.
Descontando o que ambos os países têm de receitas com a usina, o Brasil teve resultado líquido ano passado de pagamento de US$ 2,9 bilhões, enquanto o Paraguai fechou com saldo positivo de US$ 249 milhões.
A usina de Itaipu tem um peso grande na economia do Paraguai e por isso tem sido sempre um tema sensível no país. No momento, o vice-presidente Hugo Velázquez, acusado de ter interferido no acordo de maio para tentar favorecer uma empresa brasileira, sofre risco ainda maior de impeachment.
A crise já provocou nos últimos dias a queda de cinco altas autoridades paraguaias, entre elas o ministro das relações exteriores, Luis Castiglioni.
Por meio de uma nota do Itamaraty, o governo brasileiro manifestou "apreensão" com a crise no país vizinho e declarou apoio a Abdo, com quem Bolsonaro desenvolveu boa relação pessoal.
"O governo brasileiro assinala o excelente nível do relacionamento Brasil-Paraguai atingido entre os Governos dos Presidentes Mario Abdo e Jair Bolsonaro, com iniciativas de grande impacto positivo para o Paraguai nas áreas econômica, de integração física e de segurança pública", diz o comunicado.
"O Brasil espera que essa cooperação com o Presidente Mario Abdo possa prosseguir, o que permitirá a plena implementação das iniciativas em curso e a consecução de novos avanços, inclusive no que tange à implementação, em benefício mútuo, dos compromissos dos dois países ao amparo do Tratado de Itaipu", destaca ainda a nota.
Contexto
Para entender o acordo firmado em maio e toda confusão criada por ele, é importante fazer uma retrospectiva histórica. A usina binacional foi construída após acordo firmado entre Brasil e Paraguai em 1973, quando os dois países eram governados por ditaduras militares.
O tratado estabeleceu que cada nação seria dona de metade do empreendimento e que ele seria construído com um empréstimo contraído por ambos os países, com prazo de 50 anos de pagamento.
"O investimento total para a sua construção, incluindo as rolagens financeiras, totalizou US$ 27 bilhões, além de US$ 100 milhões de capital social. Os recursos para tal investimento foram viabilizados através de um contrato de financiamento com duração de 50 anos, que irá se encerrar em 2023, com a quitação total da dívida dentro do prazo previsto, feito notável para as 2 (duas) nações vizinhas", destaca boletim de abril da FGV Energia.
Para conseguirem o financiamento, os países estabeleceram no tratado que o custo para pagar o empréstimo entra na tarifa de energia. Além disso, se comprometeram "a adquirir, conjunta ou separadamente na forma que acordarem, o total de potência instalada".
Itaipu é a segunda maior usina do mundo em potência instalada (14.000 MW). Como o Paraguai tem uma economia bem menor que a brasileira, consome apenas uma parte da sua metade e vende o restante para o Brasil, por meio da Eletrobras. Com isso, o mercado brasileiro consome 85% da energia de Itaipu, e o Paraguai, 15%.
O tratado não permite ao Paraguai vender a outros países nem a outras empresas, sendo esse ponto uma das principais revoltas dos paraguaios, que acreditam que poderiam lucrar mais tendo outros consumidores para sua energia excedente. Já o governo brasileiro diz que, ao longo das décadas, comprou a energia excedente paraguaia mesmo quando havia excesso de energia no sistema brasileiro, honrando o tratado.
Além disso, acordo firmado em 2009 entre os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo quase triplicou a taxa paga pelo Brasil ao comprar a energia excedente paraguaia. Com isso, em 2018 o valor pago ao Paraguai ficou em US$ 327 milhões.
No entanto, no início da década passada, Itaipu passou a gerar aos dois países uma energia extra a US$ 6 por MWH, bem mais barata porque não incluía os custos do empréstimo. Em 2007, o governo Lula aceitou ceder ao Paraguai a preferência para compra de toda essa energia extra.
O paraguaio Fernando Masi, pesquisador do Cadep (Centro de Análisis y Difusión de la Economía Paraguaya), disse a à BBC News Brasil que o acordo foi uma "compensação" ao Paraguai pela instalação de mais duas turbinas em Itaipu, que eram de interesse do Brasil.
Segundo o jornal Estado de S. Paulo, o problema mais recente que gerou a tentativa de acordo em maio é que o Paraguai teria passado a manifestar desde 2018 a intenção de consumir um patamar da energia mais cara abaixo do que de fato estava consumindo, numa operação contábil que lhe permitiu comprar mais dessa energia extra barata do que seria possível.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, isso gerou uma dívida do Paraguai que está em US$ 50 milhões e deve subir para US$ 130 milhões até o final do ano.
O acordo de maio, então, previa que o Paraguai aumentaria gradualmente até 2022 sua perspectiva de compra de energia.
"O custo da energia cobrada do Paraguai é proporcional à energia que eles declaram que vão consumir. Quando eles declaram menos, é uma artimanha", afirma Claudio Sales.
"Esse barulho gigantesco (em reação ao acordo) é porque há muita desinformação. O tratado de Itaipu é excelente para os dois países, mas o mais beneficiado é o Paraguai", disse ainda.
'Descofiança paraguaia'
Do lado de lá do Rio Paraná, no entanto, a visão é outra. Segundo Fernando Masi, pesquisador do Cadep (Centro de Análisis y Difusión de la Economía Paraguaya), o acordo de maio gerou grande revolta na população por dois fatores.
Primeiro, por uma desconfiança com relação à classe política, devido as histórico de corrupção elevada no país.
"Há uma percepção de que as autoridades concordaram com um acordo desvantajoso em troca de benefícios pessoais", disse ele, reconhecendo, porém, que não há provas concretas disso.
Além disso, afirma Masi, o acordo assinado em maio significaria que o Paraguai teria que abrir mão de parte da energia barata que tem direito a comprar de Itaipu. Questionado se não seria justo o Brasil reivindicar essa energia, respondeu: "Não é questão de justiça. Foi uma compensação pela ampliação da usina, com aquisição de mais duas turbinas, por interesse do Brasil".
Para Masi, embora Bolsonaro tenha boa relação pessoal com Mario Abdo, sua política externa é negativa para o Paraguai.
"Esse Brasil de soft power (termo dado à influência de um país em decisões internacionais por meio de sua capacidade de persuasão, sem uso de coerção, poder econômico ou militar), que com Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma buscava a integração sul-americana e começou a fazer concessões aos países menores, como Paraguai, Bolívia e Uruguai, não existe mais. Agora é uma política externa de imposição", criticou.