A história e o mito dos índios cavaleiros do Pantanal, 'decisivos' na Guerra do Paraguai
Terra Indígena Kadiwéu, uma das tribos mais afetadas pelas queimadas atuais no Pantanal, foi invadida por pecuaristas e posseiros e está sob disputa judicial há décadas.
Uma lenda do povo indígena Kadiwéu conta que, no fim do século 19, foi o imperador Dom Pedro 2º quem lhes deu a terra onde vivem ainda hoje, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai.
A concessão de uma gigantesca reserva seria uma recompensa pelo apoio dos antigos Mbayá-Guaikurus, seus antepassados, durante a sanguinária Guerra do Paraguai. Conhecidos como "índios cavaleiros", eles quase desapareceram por conta da guerra — os Kadiwéus foram aqueles que sobreviveram.
A história por trás do mito revela muito sobre esse povo, em especial o uso simbólico que ele faz de suas próprias origens.
A primeira medição da reserva realmente data da virada para o século 20. Oficialmente, porém, ela só foi demarcada, homologada e registrada em 1984 — nela vivem por volta de 1,7 mil indígenas da etnia, junto a Chamacocos, Kinikinaus e Terenas.
A Terra Indígena Kadiwéu, que atualmente é uma das mais afetadas pela onda de incêndios no Pantanal, é imensa: são 538 mil hectares, o equivalente a mais de quatro vezes a área do município do Rio de Janeiro.
"Eles [Kadiwéus] levam a sério o mito do 'finado Pedro' — não Dom Pedro 2º, mas Antônio Pedro Alves de Barros. Era o presidente do Mato Grosso no fim do século 19, que se aliou aos Kadiwéus para lutar contra o bando de jagunços de Jango Mascarenhas, um coronel da região à época", diz o professor da Universidade Federal do Amapá Giovani da Silva.
Há mais de 20 anos o professor frequenta a reserva, onde desenvolve trabalhos educacionais: suas iniciativas tentam resgatar e preservar as origens dos indígenas dali.
Junto aos Guanás, dos quais Kinikinaus e Terenas descendem, os Kadiwéus tiveram extrema dificuldade para sobreviver. Tudo porque Dom Pedro 2º não lhes garantiu as terras prometidas.
Por sua cultura de guerra, habilidade na montaria e amplo domínio sobre o Chaco e o Pantanal, foram decisivos na Guerra do Paraguai. No sanguinário conflito, os "índios cavaleiros" lutaram ao lado dos brasileiros.
Em seu trabalho junto aos Kadiwéus, Giovani da Silva teve acesso a parte das memórias coletivas sobre a guerra.
"Os alunos [indígenas] contavam que, se os brasileiros não tivessem feito aliança com os Ejiwajegi [Mbayá-Guaikurus], o Brasil teria perdido, e o atual Mato Grosso do Sul seria território paraguaio. O rio Paraguai, segundo eles, teria se tornado um verdadeiro 'mar de sangue paraguaio' durante o conflito", diz, em um artigo sobre as construções simbólicas dos indígenas.
Pela montaria, a conquista do Chaco e do Pantanal
Caçadores versados na arte da guerra, esse povo acostumou-se a fazer acordos com não indígenas. A destreza de seus antepassados na montaria foi um dos elementos mais importantes nas negociações com portugueses e brasileiros.
Os primeiros contatos dos antigos Mbayá-Guaikurus com cavalos aconteceram há mais de 300 anos. Por travarem inúmeras batalhas contra colonizadores europeus, rapidamente os indígenas se apossaram dos animais, domando-os para transitar pelas planícies alagadas no coração do continente.
Especialmente nos séculos 17 e 18, foi graças à sua imensa tropa que eles acessaram povos indígenas mais afastados, impondo-lhes uma espécie de subordinação.
Acredita-se que os Mbayá-Guaikurus tiveram de 6 mil a 8 mil cavalos sob seu comando naquela época. O que se sabe, porém, é que a tropa foi bastante usada: só contra brasileiros e portugueses, os indígenas travaram intensas batalhas por mais de 70 anos, desde a década de 1720 à virada do século 19.
"Em pouco antes de 1800, eles migraram ao leste. Vieram para o lado brasileiro do rio Paraguai, e essa transição se deu muito pela colonização espanhola, que os empurrava mais e mais ao norte do Paraguai", diz Giovani da Silva.
Para o professor da Federal do Amapá, o domínio da montaria foi decisivo na correlação de forças com outros povos, fossem indígenas ou não. Até hoje, é uma característica apropriada simbolicamente pelos Kadiwéus.
Darcy Ribeiro também pesquisou os Kadiwéus. Ainda muito jovem, viveu na reserva e investigou as origens do mito dos "índios cavaleiros".
"É muito provável que [os Mbayá-Guaikurus] tenham sido compelidos a aceitar aquele habitat [o Chaco] sob pressão de outros povos. Uma indicação disto é que os Mbayá, ao aumentarem seu poderio guerreiro, foram se aproximando do rio Paraguai, o que, de resto, ocorreu com todos os povos chaquenhos, sempre em luta de um nicho melhor", disse o renomado antropólogo em seu estudo.
Os ancestrais dos Kadiwéus também eram conhecidos pela resistência física, fator decisivo para suas glórias no Chaco e no Pantanal.
"Os Mbayá-Guaikurus foram, como a maioria das etnias guerreiras, conscientes do valor que representava a resistência física e a fomentavam, com diferentes práticas físico-cerimoniais e prescrições alimentares", diz Giovani da Silva em uma de suas pesquisas.
A cultura da guerra era estimulada entre os Mbayá-Guaikurus desde muito cedo. Ainda crianças, tinham relações vistas como agressivas com seus pais.
Na adolescência, passavam por rituais de provação à dor e ao medo. As cerimônias duravam um dia inteiro, com os mais velhos tocando tambores enquanto os jovens eram testados física e espiritualmente.
Já na transição para a vida adulta, aos 20 anos, os indígenas que se tornariam guerreiros tinham o corpo coberto de cera ou gordura de peixe e, em seguida, os mais velhos os enfeitavam com penas de ave de rapina. Assim deixavam de ser acompanhantes dos guerreiros para convocarem incursões, usando pinturas corporais de diversas cores com uma estrela branca nas costas.
Controversa relação com outros povos indígenas
Por serem genuínos guerreiros, os Kadiwéus herdaram uma organização interna baseada na pureza da linhagem de cada indivíduo. Sua cultura é bastante complexa e, para alguns, guarda semelhança com a de povos de outros continentes — como os europeus.
Os paralelos entre indígenas e colonizadores dividem antropólogos e pesquisadores. Os Kadiwéus eram livres para propor incursões em terras rivais — seja para batalhar, caçar ou mesmo capturar crianças.
Espaçadamente entre 1946 e 1947, Darcy Ribeiro viveu na reserva com sua companheira, Berta Ribeiro, e estudou a árvore de parentesco dos indígenas.
O antropólogo notava uma divisão na reserva, comandada apenas por aqueles considerados "puros" — nascidos da união entre descendentes diretos dos Mbayá-Guaikurus. Kadiwéus que se uniam a Kinikinaus e Terenas eram tidos como subalternos, e havia também aqueles capturados de outros povos, ainda muito jovens, considerados inferiores.
"Os Kadiwéus tinham praticamente substituído o pacto pela adoção, uma vez que as mulheres não se permitiam ter filhos. Esta é uma característica dos grandes povos guerreiros, onde as mulheres se tornam guerreiras também e se negam a ter filhos", disse Ribeiro em uma entrevista realizada em 1995.
Darcy Ribeiro defendia que os indígenas usavam a escravidão contra seus rivais. Giovani da Silva concorda que a captura de crianças de outros povos era algo comum para eles, mas defende que as relações entre os povos na reserva são mais complexas do que parecem.
"Não se trata nem de escravidão, nem de servidão, mas uma espécie de troca de serviços - especialmente no caso dos Kinikinaus", diz o professor.
Segundo suas pesquisas, Kinikinaus ofertavam parte de sua colheita aos Kadiwéus - que haviam autorizado sua chegada e permanência, ainda nos anos 1940. O acordo envolvia também proteção em caso de invasões.
"Os cronistas dos séculos 16 e 17 já narravam as relações baseadas em trocas entre os povos originários, como os Mbayá-Guaikurus e os Guanás [ancestrais de Kinikinaus e Terenas, de cultura agrícola]", afirma Giovani.
Dos cavalos aos rebanhos
Dos tempos de montaria restou aos Kadiwéus um profundo conhecimento sobre como criar animais de médio e grande porte. Depois da consolidação da república, os indígenas tiveram de se adaptar à chegada da pecuária ali.
A cavalaria deu lugar à criação de gado, tanto na reserva quanto no entorno.
Graças às políticas colonizadoras de Getúlio Vargas, teve início uma migração de fazendeiros e pecuaristas vindos do sul. Pouco a pouco, posseiros começaram a disputar a fração norte da reserva - em um conflito fundiário que perdura até hoje.
Durante a ditadura militar, as invasões de pecuaristas e posseiros na reserva tinham apoio do governo — com aval do antigo Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, e também da Fundação Nacional do Índio, a Funai.
Os conflitos viraram manchete no fim da ditadura.
Nos anos 1980, tensões escalaram perigosamente e havia algo como 1,8 mil invasores dentro da reserva — resultado da "vista grossa" dos militares. Ao pé da Serra da Bodoquena, no norte da reserva, Kadiwéus prepararam-se para a guerra contra fazendeiros por causa de arrendamentos feitos à sua revelia, inclusive com denúncia de participação da Funai.
A tensão foi dissipada em 1985 por meio de um acordo de paz costurado por figuras como Mário Juruna - o primeiro deputado federal indígena do Brasil.
A região norte da reserva segue em disputa até hoje. Fazendeiros reclamam na Justiça a posse de mais de 300 mil hectares das terras há mais de 30 anos.
Enquanto isso, os rebanhos tomaram conta deste encontro entre Cerrado e Pantanal nas últimas décadas. Só em Porto Murtinho, onde fica a terra indígena, fazendeiros ocupam mais de um milhão de hectares com um rebanho de mais de 650 mil cabeças de gado. É uma área maior que toda a Jamaica, exclusivamente para a pecuária.
É dessa região que vêm grande parte das queimadas nessa reserva em 2019.
A Terra Indígena Kadiwéu tem sido duramente atingida pelo fogo: é a reserva com maior número de focos de incêndio identificados pelo programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no Pantanal. Entre 1º de janeiro e 18 de novembro, o chamado satélite de referência - que baseia a série histórica - registrou 1.267 focos dentro da reserva.
No mesmo período em 2018, o mesmo satélite captou apenas 196 focos na reserva.
Segundo um estudo conjunto da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul com o Ibama e os indígenas, entre 2001 e 2018 a Terra Indígena Kadiwéu perdeu, em média, 120 mil hectares por queimadas a cada ano.
É como se a reserva tivesse um município do Rio de Janeiro inteiramente queimado desde 2001.