A JBS pode ser punida por comprar dólares e vender ações antes da delação premiada?
A notícia da delação premiada da JBS não trouxe apenas turbulências políticas: em 18 de maio, dia seguinte a revelações da gravação feita pelo dono da empresa, Joesley Batista, de uma conversa com o presidente do país, Michel Temer, o dólar disparou e a Bovespa despencou - a ponto de o pregão precisar ser momentaneamente interrompido por conta da volatilidade que atingiu níveis preocupantes.
Agora, investiga-se se a própria JBS poderia ter se beneficiado, ao menos em parte, dessa turbulência.
A empresa é alvo de cinco processos investigativos abertos em 19 de maio na Comissão de Valores Mobiliários (CVM, autarquia que regula o mercado de capitais no Brasil), para apurar, entre outras coisas, "indícios de eventual prática do crime de insider trading" - ou seja, agir no mercado com informações privilegiadas.
O motivo: segundo fontes da imprensa financeira, a J&F, a holding que controla a JBS, teria se posicionado para comprar, via corretoras, uma grande quantidade de dólares (estimada em mais de US$ 1 bilhão) no mercado futuro, poucas horas antes de a notícia da gravação de Joesley vir à tona.
Após a divulgação do conteúdo da conversa entre Joesley e o presidente Michel Temer e as delações dos executivos da JBS, houve uma súbita valorização do dólar em relação ao real que superou 8% em um só dia, algo que não ocorria desde a maxidesvalorização da moeda nacional, em janeiro de 1999.
E no mês anterior, de acordo com o jornal Valor Econômico, os controladores da JBS venderam o equivalente a R$ 327,4 milhões em ações da empresa ao longo de 6 dias. Alguns dias depois, a JBS comprou 19,3 milhões de ações da própria empresa - cerca de 60% dos papéis que tinham sido vendidos pelos controladores.
Em pronunciamento no último sábado, o presidente Michel Temer acusou os irmãos Batista de terem cometido o "crime perfeito".
Em nota à BBC Brasil, a JBS afirmou que "todas as operações de compra e venda de moedas, ações e títulos realizadas pela J&F, suas subsidiárias e seus controladores seguem as leis que regulamentam tais transações".
Abaixo, a BBC Brasil responde a três questões que as acusações feitas contra a JBS despertam:
Que crimes podem estar por trás disso - e como a JBS se beneficiaria?
Ao comprar dólares antes de a moeda americana subir e vender ações próprias antes de o valor destas cair, a empresa e seus donos poderiam, em tese, ganhar dinheiro com a turbulência que sua delação criou.
E, por ter conhecimento prévio do conteúdo das delações, antes dos demais, a empresa agora é investigada por insider trading.
O mercado financeiro pressupõe que todos os agentes compram e vendam com uma igualdade de informações disponíveis a todos.
"(O que investiga-se é) se utilizaram informação ainda não disponível (ao público, no caso a delação premiada) para obter um lucro e, consequentemente, causar um prejuízo para terceiros que não conheciam a delação", explica à BBC Brasil Ary Oswaldo Mattos Filho, professor sênior da FGV Direito-SP e ex-diretor da CVM.
"O que há de concreto é que havia um fato relevante que não foi revelado quando os controladores venderam as próprias ações. Mas comprar e vender no mesmo dia não é comum. Temos que esperar a investigação", agrega o especialista.
Além disso, segundo Alexandre Cesar Kawakami, advogado especialista em mercado de capitais, é preciso investigar se não houve manipulação de mercado, que seria alterar de forma artificial o valor das negociações.
No caso da compra de dólares, a CVM investiga a atuação da JBS no mercado futuro - quando se acerta uma compra com preço específico para receber a moeda numa data futura.
Isso poderia, segundo Mattos Filho, ser considerado crime contra o mercado de capitais, em teoria. "Ainda é difícil dizer, porque não há mais detalhes sobre a investigação", diz.
Um terceiro advogado ouvido pela BBC Brasil (e que pediu anonimato) disse achar difícil comprovar essa eventual manipulação, já que a compra foi pulverizada entre diversas corretoras.
No caso das ações, a compra e a venda foram feitas por empresas do mesmo grupo. Os papéis foram vendidos pelos controladores e comprados pela própria JBS.
O que cabe à investigação da CVM, explica Kawakami, "é verificar se o timing (momento, em tradução livre) da eventual manipulação coincide com o timing de eventuais ganhos financeiros da JBS com as operações".
A empresa afirmou que "como já informado ao mercado, em relação às notícias veiculadas nos últimos dias sobre operações de câmbio que teriam sido realizadas pela JBS, a companhia esclarece que gerencia de forma minuciosa e diária a sua exposição cambial e de commodities".
"A JBS tem como política a utilização de instrumentos de proteção financeira visando, exclusivamente, minimizar os seus riscos cambiais", disse a empresa.
O acordo de delação premiada da JBS protege a empresa dessas investigações?
Pelo acordo de delação premiada, a JBS se compromete a passar informações às autoridades em troca de penas menores para seus crimes.
Mas isso, em princípio, não incluiria os eventuais crimes financeiros pelos quais a empresa está sendo investigada na CVM, explica a Procuradoria Geral da República.
"O acordo prevê imunidade aos colaboradores pelo conjunto de crimes delatados. Neste caso: corrupção, organização criminosa e tentativa de obstrução à Justiça", disse a PGR em nota à BBC Brasil.
Mas há um adendo: "Os colaboradores se comprometem a colaborar continuamente, não cometer outros crimes e devem comparecer sempre que requisitados. Caso alguma dessas cláusulas seja quebrada, a qualquer momento, o acordo pode ser anulado em sua integralidade e as provas continuam tendo validade."
Questionada pela BBC Brasil se os supostos crimes financeiros, caso sejam comprovados, poderiam configurar uma quebra do acordo de delação, a PGR informou que "depende da investigação".
Que tipo de punição pode haver?
Não há prazos para a conclusão da investigação da CVM, mas, se comprovado o uso de informação privilegiada, o caso pode se transformar em um processo administrativo, passível da aplicação de multa e de um termo de ajuste de conduta.
Em seguida, segue para investigação do Ministério Público Federal (MPF), que pode abrir um processo penal contra os controladores da empresa.
A lei 6385/76, que regula o mercado financeiro, prevê penas de um a cinco anos de prisão e multa de até três vezes o montante da vantagem ilícita obtida para o crime de insider trading.
Já no caso da manipulação de contratos futuros - referente à compra de dólares -, a pena prevista é de um a oito anos de prisão, além da multa de até três vezes o total que a empresa ganhou ou deixou de perder com o crime.
O processo, porém, é lento. O que pode mudar o ritmo é uma eventual pressão externa, dizem especialistas.
"O processo administrativo sancionatório na CVM normalmente duraria uns dois anos, mas pode andar mais rápido por causa da pressão popular e do Poder Executivo, que não está nada feliz. E a CVM é um órgão do Executivo (é vinculada ao Ministério da Fazenda)", diz o advogado especializado em mercado financeiro que pediu anonimato.
No sábado, o presidente Michel Temer fez duras acusações à conduta da JBS.
"Graças a essa gravação fraudulenta e manipulada, (Joesley Batista) especulou contra a moeda nacional. A notícia foi vazada, seguramente, por gente ligada ao grupo empresarial, e antes de entregar a gravação, comprou um bilhão de dólares, porque sabia que isso provocaria o caos no câmbio", disse Temer.
"Por outro lado, sabendo que a divulgação da gravação também reduziria as ações de sua empresa, as vendeu antes da queda da bolsa. Não são palavras minhas apenas, esses fatos já estão sendo apurados pela Comissão de Valores Mobiliários."
Segundo Mattos Filho, se a CVM concluir que houve crime, abre-se um processo administrativo que passaria por pelo menos dois julgamentos internos - considerando que deve haver recurso.
"O processo penal pode ser iniciado independentemente da CVM. O MPF pede à Polícia Federal para investigar e, se (a investigação) for positiva, o MPF pede a transformação do inquérito em processo criminal. O MPF pode utilizar a investigação da CVM como elemento de ajuda, mas é preciso haver um inquérito da PF."
Por enquanto, diz Mattos Filho, é difícil avaliar a consistência do caso contra a JBS na CVM. Mas ele acrescenta que "toda a documentação que tenha sido levantada pela PGR para fazer o acordo com os delatores já é um material importante para caracterizar que a compra e venda foi feita com a utilização de informação que só eles e o Ministério Público sabiam".
Se a CVM comprovar crime financeiro no caso da compra de dólares, diz o especialista, ainda é possível que os que venderam a moeda para a JBS - que não tinham a informação privilegiada e foram prejudicados posteriormente com a alta do dólar - movam uma ação civil contra a empresa.