A jornada de uma boliviana, do trabalho escravo à ocupação em São Paulo
Com dificuldades de se manter e ultrapassar a burocracia do aluguel, imigrantes e refugiados vão morar em ocupações sem-teto no centro de São Paulo.
Na porta de seu quartinho, a boliviana Virginia Paulina explica como foi parar no 9º andar de uma ocupação sem-teto no centro de São Paulo: "Fui expulsa do apartamento onde eu morava".
Para ela e o marido, trabalhadores da área têxtil, era difícil manter uma casa que custava R$ 1.500 por mês - sem contar a energia elétrica, água, telefone. "A gente trabalhava só para pagar o aluguel", conta. O bolso apertou e o aluguel atrasou um mês, dois, três. Um dia, o proprietário pediu que o casal e seus quatro filhos se retirassem.
Essa trajetória tem sido comum entre muitos imigrantes e refugiados que chegam em São Paulo. Com dificuldades para se manter, eles acabam engrossando as fileiras de movimentos sociais de moradia e lotando quartos em ocupações da cidade.
No prédio Wilton Paes de Almeida, que desabou e matou ao menos uma pessoa durante um incêndio, cerca de 25% dos moradores eram estrangeiros, segundo um cadastro feito pela prefeitura em março. A maior parte era de angolanos (17), mas havia também peruanos (4), bolivianos (3) e dominicanos (2), entre outros.
Na ocupação Prestes Maia, onde a boliviana Virginia mora, há estrangeiros em quase todos os andares. São 21 pavimentos em um prédio e nove em outro, acessados apenas por escadas pois não há elevadores. O local tem 470 famílias - cerca de 2.000 moradores.
Virginia encara a ocupação como um refúgio, um local onde encontrou certa calma depois das agruras de uma imigrante boliviana em São Paulo.
Ela chegou ao Brasil em 2001, quando tinha apenas 21 anos. "Era uma época difícil na Bolívia", conta. Deixou La Paz com a promessa de que, em São Paulo, trabalharia como empregada doméstica. Porém, a esperança caiu por terra quando, no primeiro dia na cidade, descobriu que ficaria presa em uma oficina de costura na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte.
Foi escrava por um ano, trabalhando sem receber salário e sem poder sair do local.
"O chefe da oficina me ameaçava, não deixava eu sair. Como eu não tinha visto, ele dizia que a Polícia Federal estava caçando bolivianos e que eu seria presa", conta, enquanto sua filha de quatro anos pinta um desenho em um livro didático.
Virginia e seu marido tiveram de fugir da trabalho e da escravidão. Por anos, eles vagaram entre confecções da cidade, até abrir uma pequena oficina de costura em um apartamento do Bom Retiro. Ficaram dois anos, mas o preço do aluguel era impraticável. "Ou a gente comia ou pagava o aluguel", diz Virginia.
Foram despejados.
Burocracias do aluguel
Segundo Marcelo Haydu, coordenador do Instituto de Reintegração do Refugiado, o preço alto do aluguel na cidade é um dos principais fatores que têm levado estrangeiros para ocupações.
Em São Paulo, o valor médio por metro quadrado é de R$ 35,86 para locação, de acordo com o índice FipeZap. Isso significa que, para alugar uma casa de 30 m², por exemplo, seria preciso desembolsar R$ 1.075 por mês, em média.
Haydu cita outro fator: para locar um espaço, imobiliárias exigem fiador, seguro ou depósito antecipado. "Como um imigrante que chega no país em situação de vulnerabilidade consegue ultrapassar essa burocracia? Ele chega às vezes sem falar uma palavra de português, com pouco dinheiro no bolso, sem documentos. Conseguir fiador já é difícil para brasileiros, imagina para eles", diz.
O resultado é que muitos estrangeiros acabam se instalando em ocupações ou em bairros da periferia da cidade, como Guaianases e Itaquera, no extremo leste. Nesses locais, eles negociam o aluguel diretamente com o proprietário, que normalmente não fazem as mesmas exigências das imobiliárias da região central.
Casa ou comida
Virginia foi morar na ocupação Prestes Maia depois do despejo. Ali, seus custos são menores.
Situação parecida viveu o costureiro boliviano Adolfo Marma, de 48 anos, que também trabalhou em situação de escravidão antes de chegar ao prédio de sem-teto no centro. "Nossa renda é de R$ 1.400. Se você paga um aluguel de R$ 1.000, não sobra quase nada para comer", diz.
A ocupação Prestes Maia é gerenciada pelo Movimento de Moradia Luta por Justiça (MMLJ), que cobra R$ 105 por família - o valor foi confirmado à BBC Brasil por outros moradores.
Em outras ocupações, sem-teto pagam até R$ 400 mensais por uma vaga. Movimentos de moradia dizem que o valor não se trata de aluguel, mas sim de uma taxa que banca manutenção do edifício, limpeza e despesas com advogados.
Nesta quinta, a Polícia Civil afirmou que vai investigar a "cobrança de aluguel" por movimentos sociais de moradia.
"Há movimentos que são sérios, e que usam esse valor de forma correta. Mas há outros que realmente exploram os imigrantes, cobrando taxa sem dar nenhum retorno. É preciso separar quem é sério de quem não é", diz Haydu.
'Luta por moradia'
No 14º andar da ocupação da Prestes Maia, vive a família de Angela (nome fictício), peruana de 50 anos. Ela e o marido vendem artesanato no centro de São Paulo.
Quando procuraram alugar uma casa, empacaram em uma barreira inesperada: os locatários não aceitavam locar um espaço para um casal com duas crianças pequenas.
"É muito estranho: dizem que seus filhos vão estragar a casa, vão fazer barulho, dão um monte de desculpas. Eu só conseguiria se pagasse mais caro", conta. Pagar mais de R$ 1.000 de aluguel estava fora de cogitação para uma família com uma renda mensal de R$ 1.500, "nos meses bons", diz Angela.
Preferiram a ocupação.
"A situação dos imigrantes é muito parecida com a dos brasileiros que vão para ocupações. Eles não têm emprego formal e ganham pouco fazendo bicos. Com renda baixíssima, não conseguem acessar o mercado legal de aluguéis, que exige dinheiro e uma série de burocracias", explica Diana Thomaz, doutoranda na universidade canadense Wilfrid Laurier.
Thomaz passou seis meses em São Paulo, pesquisando os motivos que levam refugiados e imigrantes em alta vulnerabilidade social a ocupações sem-teto.
Segudo ela, os estrangeiros chegam aos prédios sem entender do que é um movimento por moradia. "Eles querem apenas um local para ficar. Há alguns grupos que explicam didaticamente o que siginifica o movimento, mas nem todos os estrangeiros aderem à luta de forma assídua", explica.
Antes de entrar na ocupação Prestes Maia, todo morador passa por um "grupo de formação" para entender como funciona o movimento. O MMLJ diz que a fila de espera por uma vaga é de quatro meses.
Déficit habitacional
Segundo a prefeitura, São Paulo tem um déficit habitacional de 358 mil moradias. Famílias chegam a esperar décadas por uma unidade social.
Dados da prefeitura apontam que 46 mil pessoas moram nas 206 ocupações na cidade.
A prefeitura diz que apoia imigrantes, com emissão de documentos e vagas em abrigos. Eles também têm direito à auxílio-moradia de R$ 400, caso se encaixem nos critérios do benefício, como renda e situação de vulnerabilidade.
Segundo Fernando Chucre, secretário municipal de Habitação, as famílias estrangeiras do edifício Wilton Paes de Almeida foram cadastradas e estão recebendo atendimento da prefeitura.
Família distante
Uma das 70 ocupações do centro de São Paulo, na rua Cesário Motta Júnior, é quase integralmente formada por imigrantes africanos e haitianos.
Na porta, o angolano Alexandre Kikos, de 38 anos, conta à BBC Brasil por que resolveu morar no local. "Eu pagava R$ 750 por uma casa em Itaquera. Era um preço muito alto, ainda mais depois que perdi o emprego", diz ele, que trabalhava como auxiliar em uma empresa de transportes.
Desempregado, Kikos hoje atua como porteiro da ocupação. Ele interrompe a entrevista para mandar uma mensagem para sua mulher. "Ela ficou em Angola, junto com minhas duas filhas. Eu mandava dinheiro para elas, mas hoje não consigo mais", diz.
Faz dois anos que ele não vê a família.
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