'A solidão dos idosos não muda, essa é a pior parte': o desabafo de enfermeira que cuida de casos de coronavírus
Profissional que acompanha pacientes com covid-19 relata que muitos idosos, que são do grupo de risco, se sentem sozinhos, pois familiares não podem permanecer perto deles.
Na semana passada, um idoso de 82 anos foi internado em um hospital particular de São Paulo (SP) com febre e intensos problemas respiratórios. Ele tossia insistentemente. Durante dias, permaneceu sozinho na unidade de saúde. A família não pôde acompanhá-lo, porque era um caso suspeito para o novo coronavírus — o exame até o momento não ficou pronto. Ele não resistiu às complicações de saúde e morreu. Não se despediu dos parentes.
"Ele morreu sozinho. A família foi informada que ele estava mal, mas não pôde vê-lo", relata a enfermeira Marcia Cristina de Jesus, que lidera uma equipe que acompanha pacientes confirmados ou com suspeita do novo coronavírus. O hospital em que ela trabalha tem três andares destinados somente a casos relacionados ao vírus.
A profissional de 52 anos, sendo 25 deles atuando na área da saúde, afirma que esse é o período mais estressante e apreensivo da sua carreira. Em relação aos pacientes com o novo coronavírus, ela diz que a solidão torna tudo mais difícil. "Eles não podem receber visitas e ficam ali, à espera dos resultados dos exames, sem saber se realmente têm o coronavírus", relata à BBC News Brasil.
Ela frisa que os registros de complicações graves em decorrência do coronavírus não se restringem aos idosos. "Há muitos casos de jovens na faixa dos 27 a 40 anos também. Essa ideia de que só acomete os mais velhos é errada", declara.
No hospital em que ela trabalha, um homem de 30 anos morreu por suspeita de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus — o exame ainda não ficou pronto.
Em meio aos problemas de saúde causados pelo Sars-Cov-2, como é chamado oficialmente o novo vírus, os pacientes precisam lidar com a solidão, porque nenhum ente querido pode se aproximar, para evitar a propagação do vírus. Os pacientes ficam dias ou semanas internados sozinhos.
Marcia comenta que os idosos, que fazem parte do principal grupo de risco da covid-19, são os que mais têm dificuldades para entender o momento de solidão enquanto estão internados. "Muitos dos jovens lidam melhor com isso. Eles são mais ansiosos e se preocupam mais em pensar quando vão embora", diz.
"Já os idosos, muitos deles não conseguem entender por que estão ali. Alguns familiares se aproveitam um pouco da situação para deixá-los sozinhos por muito tempo. Essas pessoas mais velhas têm uma sensação de solidão, tristeza e de muita impotência", relata a enfermeira.
Especialistas apontam que é frequente a dificuldade de idosos em lidar com a solidão após o diagnóstico do coronavírus, ou enquanto aguardam o resultado do exame.
Durante a solidão do isolamento, podem surgir também os pensamentos relacionados ao fim da vida. No Brasil, até terça-feira (31), havia 201 mortes em decorrência do novo coronavírus — a grande maioria das vítimas são pessoas idosas.
"Nesse momento de isolamento, esses idosos se veem afastados dos seus familiares e entes queridos e isso é sentido por eles como um abandono. Eles sabem que é algo necessário, mas não deixa de ser um abandono. Isso os coloca em contato com a aproximação da morte, da fragilidade e da impotência diante da doença", explica Sergio Kodato, professor de psicologia social da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto
"Há aqueles idosos que reagem com garra e determinação em meio a tudo isso. Mas a maioria acaba desanimada com a situação", acrescenta Kodato.
A solidão na pandemia
A recomendação para que não haja acompanhantes em casos de pacientes com suspeita do novo coronavírus é para evitar que parentes se exponham desnecessariamente aos riscos de contrair o vírus. "Quanto mais idoso é o paciente, mais vai precisar dos cuidados da equipe de enfermagem, porque precisaremos prestar todos os cuidados que o acompanhante faria", explica Marcia.
Assim que um paciente chega a uma unidade de saúde como suspeito de coronavírus, a orientação do Ministério da Saúde é que ele seja tratado como se realmente tivesse o vírus. Por isso, ele é colocado em isolamento e os profissionais que o acompanham passam a usar Equipamentos de Proteção Individual (EPI).
A medida é tomada para evitar possível propagação do Sars-Cov-2. No Brasil, em razão dos poucos testes disponíveis, o tempo médio que a pessoa espera para receber o resultado do exame é de sete dias a duas semanas — a previsão é de que o prazo diminua futuramente, após o país adquirir 22 milhões de testes.
Quando o estado clínico do paciente é considerado bom, a equipe médica o libera para ficar em isolamento em sua própria casa, à espera dos resultados. Também nesse caso, a solidão se torna constante.
"Eles não podem ter contato com os parentes em casa. Para os mais velhos, a situação é muito semelhante ao hospital e eles podem se incomodar muito", pontua Márcia. Os mais novos, em muitos casos, buscam entretenimento em meios digitais como celular, computador ou videogame.
No hospital, aqueles que ficam internados nem sempre conseguem usar o celular ou ler um livro como distração. "Muitos pacientes com o a covid-19 não têm disposição no hospital. A falta de ar, causada pelo coronavírus, deixa muitos cansados. Os mais jovens costumam levar celular para se distrair, já os idosos não costumam levar nada", detalha Márcia.
Os pacientes mais jovens, segundo a enfermeira, ficam ansiosos quando estão internados à espera do exame. "Os pacientes com idade profissionalmente ativa ficam estressados e com muita ansiedade nesse período", relata. Já os idosos, segundo ela, são mais calmos. "Muitos não demonstram ansiedade para ter o resultado", pontua.
A antropóloga Mirian Goldbenberg, que estuda sobre os idosos, disse em recente entrevista ao jornal Folha de São Paulo que o coronavírus evidenciou uma situação já vivida pelos mais velhos: a ideia de que são inúteis, um peso para a sociedade e que precisam ser controlados.
Para ela, se a mortalidade do novo coronavírus fosse maior entre crianças e adultos jovens, o comportamento da sociedade seria diferente. A estudiosa afirma que há uma visão de que quando a pessoa envelhece, pode ser eliminada. "Mesmo antes da epidemia, muitos (idosos) sentiam que viviam uma espécie de morte simbólica. O valor que se dá a essas pessoas mais velhas é quase nulo, socialmente e dentro de casa", disse em entrevista à Folha.
Um dos fatores que aumentam o sentimento de solidão entre os idosos enquanto estão no hospital, segundo o psicólogo Sergio Kodato, é justamente a ideia de que são um fardo. "Se não houver apoio da família ou de pessoas próximas, esse paciente pode acabar se entregando à doença", diz.
Em busca de um conforto
Entre as equipes que acompanham os pacientes, há aquelas, como a da Márcia, que buscam confortar os pacientes internados. "Os idosos ficam mais tristes com o passar dos dias sozinhos. A nossa equipe, então, tenta transmitir um pouco de carinho. Conversamos e até cantamos para eles, às vezes. Procuramos manter um pouco de humor e serenidade diante da correria de 12 horas de plantão", comenta a enfermeira, que trabalha durante a madrugada, a cada dois dias.
"A gente tenta melhorar os dias deles, mas sabe que a solidão não muda. Acho que essa é a pior parte, além da doença em si", diz.
O psicólogo Sergio Kodato ressalta que a falta de apoio de entes queridos, ainda que a distância, pode causar dificuldades no tratamento de saúde do paciente, principalmente se for idoso. "A solidão é um pouco depressiva porque te obriga a ficar introspectivo. Quando você está enfrentando tudo isso sozinho, é como se estivesse lidando com um fenômeno maior e tende a se sentir impotente e aí começa um diálogo com a morte. Isso, de certa forma, pode acelerar o processo de morte", declara.
Ele afirma que há medidas simples de demonstração de afeto de entes queridos que podem melhorar o dia do paciente, principalmente os idosos. "Os familiares ou amigos podem pedir para a equipe médica levar algum recado para que a pessoa se sinta mais confortável, ainda que distante. Isso é muito importante para a pessoa que está internada sozinha", diz.
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Os casos
O primeiro registro do coronavírus no Brasil foi em 24 de fevereiro. Um empresário de 61 anos, que mora em São Paulo (SP), foi infectado após retornar de uma viagem, entre 9 e 21 de fevereiro, à região italiana da Lombardia, a mais afetada do país europeu que tem mais casos fora da China.
De acordo com o Ministério da Saúde, o empresário de 61 anos tinha sintomas como febre, tosse seca, dor de garganta e coriza. Parentes dele passaram a ser monitorados. Dias depois, exames apontaram que uma pessoa ligada ao paciente também estava com o novo coronavírus e transmitiu o vírus para uma terceira pessoa. Todos permaneceram em quarentena em suas casas, pelo período de, ao menos, 14 dias.
Após o primeiro caso, outros diversos registros passaram a ser feitos no Brasil. Muitos vieram de países com inúmeros casos do novo coronavírus, mas depois foram registrados casos de transmissão local e, por fim, comunitária.
Duas semanas depois, foi anunciado que o empresário de 61 anos está curado da doença provocada pelo novo coronavírus.
Cuidados
A principal recomendação de profissionais de saúde que acompanham o surto é simples, porém bastante eficiente: lavar as mãos com sabão após usar o banheiro, sempre que chegar em casa ou antes de manipular alimentos.
O ideal é esfregar as mãos por algo entre 15 e 20 segundos para garantir que os vírus e bactérias serão eliminados.
Se estiver em um ambiente público, por exemplo, ou com grande aglomeração, não toque a boca, o nariz ou olhos sem antes ter antes lavado as mãos ou pelo limpá-las com álcool. O vírus é transmitido por via aérea, mas também pelo contato.
Também é importante manter o ambiente limpo, higienizando com soluções desinfetantes as superfícies como, por exemplo, móveis e telefones celulares.
Para limpar o celular, pode-se usar uma solução com mais ou menos metade de água e metade de álcool, além de um pano limpo.