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A sombra das milícias sobre o governo Bolsonaro

23 jan 2019 - 19h31
(atualizado em 24/1/2019 às 12h10)
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Relação amistosa do clã político com grupos criminosos formados por policiais e militares no Rio remonta a mais de uma década e inclui elogios e homenagens. Filho do presidente empregava parentes de miliciano foragido.Em seu discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que "é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais". Agora, há pouco mais de três semanas na chefia do governo, o clã Bolsonaro se vê pressionado pelos elos do primogênito do presidente, o deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), com "bandidos" de farda. No caso, membros do submundo das milícias do Rio de Janeiro.

O novo episódio também colocou sob nova perspectiva antigas declarações de membros da família - inclusive do próprio presidente - em defesa de milícias. Alguns suspeitos de integrar esses grupos chegaram até mesmo a receber homenagens oficiais por parte de Flávio no passado.

A milícia é formada por policiais, bombeiros e militares da ativa ou fora de serviço que exercem um controle direto de dezenas de favelas e bairros do Rio por meio de assassinatos, tortura e extorsão. Também exploram serviços e estão envolvidos com a grilagem de terras.

Na terça-feira (22/01), em meio a uma operação policial contra grupos de milicianos que controlam as comunidades de Rio das Pedras e da Muzema, na zona oeste da capital fluminense, o jornal O Globo revelou que o gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) empregou por anos a mãe e a esposa de um dos alvos principais da ação: o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega.

Adriano, que continua foragido, é apontado pela Operação Os Intocáveis como um dos chefes do chamado Escritório do Crime, um grupo de extermínio formado por membros da "banda podre" da polícia que comete assassinatos por encomenda, muitas vezes a mando da milícia. A polícia também investiga a suspeita de participação desse grupo na morte da vereadora Marielle Franco em 2018 por encomenda da milícia que controla a favela de Rio das Pedras.

Segundo O Globo, a mãe do ex-capitão, Raimunda Veras Magalhães, trabalhou no gabinete de Flávio em diferentes períodos entre 2015 e novembro de 2018. Já a esposa, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, permaneceu na lista de assessores ininterruptamente por mais de uma década, entre setembro de 2007 e novembro de 2018. Em 2011, Adriano já havia sido preso em uma operação de grande repercussão no Rio por suspeita de atuar como segurança de um bicheiro. Em 2014, foi expulso da Polícia Militar (PM).

O caso também se entrelaçou com mais uma das encrencas de Flávio: o relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontou movimentações bancárias milionárias por parte de outro ex-assessor do senador eleito, o ex-PM Fabrício Queiroz. O documento mostra que Raimunda, mãe do miliciano Adriano, fez repasses a Queiroz, que também é um amigo de décadas do presidente Jair Bolsonaro.

Documentos do Coaf citados pelo O Globo apontam que Queiroz movimentou 7 milhões de reais entre 2014 e 2017. A suspeita é de que o ex-PM coletava parte dos salários da equipe de assessores de Flávio na Alerj. O senador eleito nega ter alguma relação com o suposto esquema.

Homenagens e mais ligações com milicianos

Os caminhos de Flávio e do miliciano já se cruzaram de maneira mais pública no passado.

Em 2003, quando iniciou seu primeiro mandato na Alerj, Flávio propôs uma homenagem a Adriano da Nóbrega. Na moção de louvor, Flávio disse que "o policial militar desenvolvia sua função com dedicação e brilhantismo, desempenhando com absoluta presteza e excepcional comportamento as suas atividades". Em 2005, Adriano recebeu a medalha Tiradentes da Alerj a pedido de Flávio. Em abril de 2018, a vereadora assassinada Marielle Franco recebeu postumamente a mesma honraria - e Flávio foi o único deputado da Alerj que votou contra a concessão.

O filho do presidente também prestou homenagem na Alerj, em 2004, a outro suspeito de integrar o Escritório do Crime e alvo da operação de terça-feira: o major da ativa Ronald Paulo Alves Pereira, que acabou sendo preso. À época da homenagem, Pereira já era investigado como autor de uma chacina de quatro jovens em São João de Meriti (RJ), ocorrida em dezembro de 2003. Mais de 15 anos depois, ele ainda não foi julgado pelo caso. Seu júri está marcado para abril.

Durante a campanha de Flávio ao Senado, surgiram outras ligações do filho do presidente com milicianos. Em agosto, a Operação Quarto Elemento prendeu dezenas de policiais suspeitos de extorquir vendedores de produtos piratas e comerciantes em situação irregular.

Entre os presos estavam os irmãos Alan e Alex Rodrigues de Oliveira, dois PMs que atuaram como seguranças em atos de campanha de Flávio. Eles são irmãos de Valdenice de Oliveira Meliga, assessora de Flávio na liderança do PSL na Alerj e tesoureira do partido no Rio. Em outubro de 2017, Flávio publicou em suas redes sociais uma foto ao lado do pai e dos três irmãos Oliveira. Na legenda, escreveu: "Parabéns, Alan e Alex, pelo aniversário, essa família é nota mil!!!".

Outros três policiais denunciados na Quarto Elemento também foram homenageados por Flávio Bolsonaro na Alerj entre 2007 e o início de 2018.

Defesa da milícia pelo clã Bolsonaro

As homenagens não constituem os únicos casos em que Flávio demonstrou publicamente uma relação amistosa com policiais e militares ligados à milícia. Em 2008, durante as discussões para a instalação da CPI das Milícias na Alerj - motivada pelo sequestro e tortura de jornalistas por milicianos -, Flávio aproveitou a ocasião para elogiar a atuação dos grupos como uma alternativa para repelir traficantes.

"Sempre que ouço relatos de pessoas que residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos, não raro é constatada a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter à escravidão, a uma imposição hedionda por parte dos traficantes, e que agora pelo menos dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública."

Em 2007, Flávio já havia dito em discurso na Alerj que não achava "justa" a "perseguição" de milícias por parte de "entidades ligadas a direitos humanos". "Não podemos simplesmente generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão", afirmou.

O próprio Jair Bolsonaro chegou a defender publicamente a atuação das milícias quando os grupos já eram conhecidos pela violência. Em 2008, o então deputado federal afirmou que elas deveriam ser "legalizadas". "Elas oferecem segurança e, dessa forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las", disse ele à rede BBC.

No mesmo ano, Bolsonaro criticou o relatório final da CPI das Milícias da Alerj quando o documento foi entregue à Câmara Federal. Ele disse na ocasião que era preciso diferenciar "milicianos que organizam a segurança da comunidade" daqueles que exploram a "venda de gás ou o transporte alternativo". "Não podemos generalizar. [...] É um relatório covarde."

Em julho de 2018, quando já aparecia na liderança das pesquisas eleitorais, Bolsonaro se distanciou do tema e disse ao jornal O Globo que as "milícias acabaram se desvirtuando".

Flávio, por sua vez, minimizou em 2011 o assassinato da juíza Patrícia Acioli por milicianos em Niterói. Na ocasião, escreveu no Twitter que a juíza "humilhava policiais". "Que Deus tenha essa juíza, mas a forma absurda e gratuita com que ela humilhava policiais nas sessões contribuiu para ter muitos inimigos", escreveu ele, à época, no Twitter.

Essa não foi a única vez em que ele criticou a atuação de juízes que agiam contra milicianos. Em 2015, a juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza foi agredida durante uma inspeção no Batalhão Especial Prisional (BEP) em Benfica, que concentrava PMs presos, para apurar denúncias de que milicianos estavam recebendo mordomias. Ela foi cercada, agredida e teve a blusa rasgada por PMs detidos. Na ocasião, Flávio defendeu os agressores e culpou Souza. "A juíza se dirigiu de forma desrespeitosa a alguns policiais, chamando de vagabundos e milicianos. [...] Acabou sendo expulsa lá de dentro por policiais que se revoltaram."

O crime do Rio bate à porta do Planalto

Para se distanciar das nomeações de parentes de um miliciano, Flávio disse que as indicações foram feitas por Queiroz, justamente o pivô da investigação das movimentações suspeitas detectadas pelo Coaf. A defesa de Queiroz disse que ele foi mesmo o responsável pela contratação, mas que não sabia que Adriano da Nóbrega tinha ligação com o crime.

No dia anterior, o jornal O Globo informou que Queiroz - que faltou a dois depoimentos no final de dezembro para prestar esclarecimentos sobre o volume de dinheiro que passou pela sua conta - permaneceu escondido por alguns dias na comunidade de Rio das Pedras logo após a revelação do caso Coaf.

Rio das Pedras é considerada o berço da milícia carioca. A região é dominada pelo grupo desde o início dos anos 2000 e ganhou mais visibilidade em 2010 graças ao filme Tropa de elite 2: o inimigo agora é outro, que teve como foco as milícias e que batizou a favela dominada pelos vilões do longa como "Rio das Rochas".

Rio das Pedras também se entrelaça com a morte de Marielle e do motorista Anderson Gomes. Uma das hipóteses das investigações - que se arrastam há quase um ano - é de que o assassinato foi encomendado por causa da atuação da vereadora no combate à grilagem de terras pela milícia na zona do oeste do Rio. O carro usado no crime, um Cobalt prata, partiu de Rio das Pedras na noite do assassinato. Ainda segundo o jornal O Globo, o celular do major Ronald Pereira, suspeito de integrar o Escritório do Crime, foi detectado nas imediações do local da morte dias antes.

No domingo à noite, após passar o fim de semana sendo castigado por novas revelações do relatório do Coaf, Flávio concedeu entrevista às emissoras Record e Rede TV!. Diante de jornalistas amistosos, ele disse que os 96 mil reais depositados de forma fracionada em sua conta em 2017 eram resultado da venda de um apartamento.

Mesmo sem exibir documentos, ele parecia ter ganhado tempo com a justificativa. No entanto, a revelação de que dois assessores têm parentesco com um suspeito de integrar um grupo de extermínio a soldo de milicianos voltou novamente a pressionar o senador eleito - e, consequentemente, o governo Bolsonaro.

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