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'Aborto é mais que necessário, é recomendado', diz Mourão sobre caso de criança estuprada

Em entrevista à BBC News Brasil, vice-presidente também questiona se medidas de isolamento rígidas teriam efeito no país para combater o coronavírus: 'Brasil é um país desigual e o brasileiro, um povo indisciplinado'.

17 ago 2020 - 18h40
(atualizado às 18h50)
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Em entrevista à BBC News Brasil, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que seria 'absurdo' uma criança de 10 anos grávida após estupro — como aconteceu no Espírito Santo — precisar ter o filho
Em entrevista à BBC News Brasil, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que seria 'absurdo' uma criança de 10 anos grávida após estupro — como aconteceu no Espírito Santo — precisar ter o filho
Foto: BBC News Brasil

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou na segunda-feira (17/08) que, no caso da criança de 10 anos de idade que engravidou após ser repetidamente estuprada pelo tio, "o aborto é mais que necessário, é recomendado".

"Esse é um crime que foi cometido contra esta criança. O nosso Código Penal é claro, em casos como esse o aborto é mais que necessário, é recomendado. Como é que uma menina de 10 anos de idade vai ter um filho e vai criar um filho? Isso é um absurdo", disse o vice-presidente em entrevista à BBC News Brasil.

O caso da criança violentada chocou o país no fim de semana. A menina foi transferida do Espírito Santo para Pernambuco, onde passou por um procedimento abortivo.

Militantes bolsonaristas, como Sara Giromini, divulgaram dados da criança nas redes sociais, incluindo seu nome. No domingo, manifestantes antiaborto chegaram a se concentrar em frente ao hospital onde a criança era tratada.

Na entrevista à BBC News Brasil, Mourão também falou sobre a pandemia de coronavírus e questionou se medidas de distanciamento rígidas poderiam funcionar plenamente no país.

"O Brasil é um país desigual e o brasileiro, um povo indisciplinado. Não adianta querer dizer que, uma ordem de Brasília que dissesse 'atenção, vai todo mundo ficar em casa', (que) ninguém iria sair, isso não iria acontecer", disse.

O vice-presidente também foi questionado sobre o aumento no desmatamento na Amazônia no último ano e comentou reportagem da revista Piauí que afirma que o presidente Jair Bolsonaro teria ameaçado "intervir" no STF em reunião com ministros.

"Eu acho difícil o presidente ter dito isso, porque, como é que ele vai intervir no STF? Não há condições, nós vivemos na democracia plena", afirmou.

Leia a seguir a entrevista.

BBC News Brasil - O Brasil discute o caso de uma criança de 10 anos que foi repetidamente estuprada pelo tio e acabou engravidando. Ela teve que deixar seu Estado para realizar um aborto em Pernambuco, aborto este previsto em lei. Uma militante bolsonarista, ex-assessora da ministra Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), divulgou o local da cirurgia e o nome da criança, o que levou algumas pessoas a protestarem em frente ao hospital. O senhor é a favor do aborto em um caso como esse? Como vê os protestos em frente ao hospital?

Hamilton Mourão - São coisas do mundo em que nós estamos vivendo, né. Esse é um crime que foi cometido contra essa criança. O nosso Código Penal é claro, em casos como esse o aborto é mais que necessário, é recomendado. Como é que uma menina de 10 anos de idade vai ter um filho e vai criar um filho? Isso é um absurdo.

Agora, há algumas pessoas que, na sua ânsia da defesa da vida, elas têm que compreender que cada caso é um caso, e este é um caso muito claro onde a lei tem que ser cumprida. Para mim é simples isso aí.

BBC News Brasil - O senhor disse que o auxílio emergencial, o chamado coronavoucher, deu um gás na popularidade do presidente, e as pesquisas realmente mostraram isso. Em 2018, no entanto, o senhor disse sobre o Bolsa Família que as pessoas deveriam crescer "por seus méritos e não por esmolas". Já o presidente Bolsonaro disse em 2011 que o Bolsa Família cria "eleitores de cabresto do PT". Por que o governo está adotando uma medida tão parecida com o petismo? O senhor mudou de ideia? O presidente mudou de ideia?

Mourão - Eu acho que um programa de assistência social deve ser quantificado pelo seu sucesso pelo número de pessoas que saem dele para ingressar no mercado de trabalho. Ele tem que preparar as pessoas para ingressar no mercado de trabalho, auxiliando-as naquele momento de dificuldade, e não mantendo-as eternamente aguardando aquele dinheirinho que o governo coloca no final do mês na conta da pessoa.

No caso específico do coronavoucher, aí é totalmente distinto, o auxílio emergencial. Ele foi concebido exatamente para auxiliar aquelas pessoas que perderam a sua capacidade de ganhar sua vida, principalmente os nossos trabalhadores informais, aquela turma que sai todo dia para vender o almoço para poder ter alguma coisa para jantar.

E na discussão, na disputa, entre governo e Congresso se chegou a esse valor de R$ 600, que foi um valor realmente grande, sendo que algumas famílias receberam dobrado, que eram as famílias chefiadas por mulheres, receberam R$ 1.200. Óbvio que foi uma injeção de dinheiro na veia de parcela extremamente necessitada da população brasileira.

Agora, a visão nossa, do governo e a minha visão em particular é essa: um programa social tem que ter como finalidade principal o ingresso da pessoa no mercado de trabalho, a liberdade da pessoa, e não a pessoa ficar eternamente dependendo daquele recurso.

'A visão nossa, do governo e a minha visão em particular é essa: um programa social tem que ter como finalidade principal o ingresso da pessoa no mercado de trabalho', diz Mourão
'A visão nossa, do governo e a minha visão em particular é essa: um programa social tem que ter como finalidade principal o ingresso da pessoa no mercado de trabalho', diz Mourão
Foto: REUTERS/Ricardo Moraes / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Mas o senhor é a favor de uma continuidade do programa, eventualmente, após o fim da pandemia, mesmo que seja outro valor?

Mourão - A minha visão é que existe essa ideia que o governo está estudando de criar um programa de renda mínima, mas tem que ter parâmetros nisto aí. E óbvio, esse programa tem que auxiliar aquelas pessoas em seu momento de necessidade, mas prepará-las para o avanço seguinte, (para) sair desta situação.

Ou seja, o governo tem que ter a capacidade de criar as facilidades para que empregos sejam gerados e a pessoa tenha sua renda e sua dignidade.

BBC News Brasil - O Brasil ultrapassou a marca dos 100 mil mortos pela pandemia de coronavírus, a segunda maior do mundo depois dos Estados Unidos. O senhor acha que o governo subestimou a doença?

Mourão - Eu acho que não. A doença desde o início foi politizada, não só no Brasil como no mundo inteiro. No mundo inteiro tem uma discussão política sobre essa doença. Até hoje, na minha visão, a ciência médica ainda está batendo cabeça sobre ela, sobre as consequências dela, sobre a melhor forma de combatê-la, apesar de, no caso específico daqui do Brasil, nós estarmos vendo que, paulatinamente, o grau de letalidade da doença vem diminuindo.

Isto significa que o nosso sistema de saúde começa a dar conta e a encontrar melhores caminhos. E as próprias pessoas, as pessoas que são infectadas já sabem as medidas profiláticas iniciais que tem que ser tomadas e com isso terminam por não ir para o hospital.

Agora, o Brasil é um país desigual e o brasileiro, um povo indisciplinado. Não adianta querer dizer que, uma ordem de Brasília que dissesse "atenção, vai todo mundo ficar em casa", (que) ninguém vai sair, isso não iria acontecer.

Isso gerou uma grande discussão. Você vê, o Estado de São Paulo, onde desde o primeiro momento o governador (João) Doria tomou as medidas que são julgadas as mais eficientes em termos de distanciamento social, e é o Estado com maior número de infectados, com o maior número de mortes.

O Brasil é difícil, não dá pra comparar. Eu vejo muita comparação sendo feita com o próprio Reino Unido, ou com a Holanda, ou com a Alemanha. Não dá, não há comparação, o Brasil é muito desigual.

Vice-presidente afirma que controvérsia sobre a cloroquina mostra que se trata de uma 'discussão política'
Vice-presidente afirma que controvérsia sobre a cloroquina mostra que se trata de uma 'discussão política'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Ainda em relação às medidas contra a pandemia: as Forças Armadas e o Exército especificamente têm uma tradição centenária de manterem instituições científicas de ponta, sempre primando pelo conhecimento científico. Mas agora vemos o Exército liderando a produção de cloroquina, um remédio sem nenhuma comprovação contra o coronavírus. O senhor acha que isso vai de encontro à tradição do Exército de estar próximo à ciência? Os recursos públicos não deveriam ser usados apenas na produção de medicamentos com eficácia comprovada?

Mourão - Esta questão da cloroquina é outra discussão política. Eu ouso dizer o seguinte: se o presidente Bolsonaro fosse contra a cloroquina, iam recomendar a cloroquina, tal forma que está essa discussão política aqui dentro.

Então tem muita gente que se curou tomando a hidroxicloroquina desde os primeiros momentos. Uma coisa é líquida e certa: depois do quinto, sexto dia que você está com febre alta, ela não cura ninguém, aí outras medidas têm que ser tomadas. Mas naqueles que tomaram nos primeiros dias, houve uma eficácia, então...

Na realidade o Exército recebeu uma determinação do presidente da República, não o Exército, os laboratórios farmacêuticos das Forças Armadas, de fabricar o produto. O produto vai permanecer aí, se não for utilizado em massa no combate à pandemia, a malária é endêmica aí em 50% do nosso território e a cloroquina é o remédio indicado contra a malária.

Eu mesmo, que estive em Angola, em missão da ONU, tive malária, tomei cloroquina e depois tomava um derivado dela profilaticamente toda semana para poder me precaver contra a ação do mosquito da malária.

Então eu não vejo que isso vai ser perdido, o recurso empregado na fabricação deste medicamento, até por que a malária é endêmica em outras regiões do mundo, como na África e alguns países da Ásia.

Eu não vejo essa questão do Exército ter saído fora da vanguarda tecnológica, até porque na área da Medicina, especificamente o Exército teve vanguarda no começo do século passado, havia poucas faculdades de Medicina no Brasil, mas agora nós já não somos uma instituição onde a pesquisa nessa área seja relevante.

BBC News Brasil - O ministro da Saúde (Eduardo Pazuello) é um general da ativa do Exército. Existe hoje uma discussão sobre a chamada "PEC Pazuello", que coloca automaticamente na reserva militares que assumam funções civis em governos. O senhor é a favor desta PEC (Proposta de Emenda Constitucional)?

Mourão - Aí é coisa bem clara, a legislação militar, o Estatuto dos Militares, diz o seguinte: você pode permanecer até dois anos em função fora da sua Força, isto é o que diz nosso estatuto.

A partir do momento em que você completa dois anos, se não puder passar para a reserva porque não tem tempo de serviço suficiente, você é obrigado a retornar para a Força. E se pode (ir para a reserva), você tem que decidir, ou permanece naquela função ou passa para a reserva.

Que é o que acontece exatamente com os nossos egressos das Forças Armadas que são eleitos para cargos políticos, exatamente para evitar o que acontecia no passado, em que o camarada era eleito deputado, senador, governador, seja lá o que fosse, passava quatro, cinco anos e depois voltava para dentro da Força. Isso não era bom.

No caso específico dos militares da ativa, que são poucos, que estão prestando serviço ao governo, é uma questão mais de foro íntimo, de decidirem aqueles que têm condição de passar para a reserva, de assim o fazerem.

Eu acho que no caso específico do Pazuello, ele sabe que é uma missão transitória. Eu acho que na hora em que o presidente chegar para ele e disser "você agora é efetivo", ele passa para a reserva.

Moradora observa queimada perto de sua casa em Porto Velho, Rondônia; vice-presidente diz que incêndios florestais vistos atualmente na Amazônia são em áreas já desmatadas anteriormente
Moradora observa queimada perto de sua casa em Porto Velho, Rondônia; vice-presidente diz que incêndios florestais vistos atualmente na Amazônia são em áreas já desmatadas anteriormente
Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino / BBC News Brasil

BBC News Brasil - No último ano, o desmatamento na Amazônia cresceu 34%, segundo o INPE. Na semana passada, o presidente disse que é mentira que a Amazônia está ardendo em fogo. Antes, o ministro (do Meio Ambiente Ricardo) Salles chegou a propor reduzir metas de preservação, mas depois recuou. Já o senhor tem defendido medidas contra o desmatamento, o combate a crimes ambientais, e "parâmetros globais de sustentabilidade". Quem os investidores e a opinião pública nacional e internacional devem ouvir? O senhor, Salles ou Bolsonaro?

Mourão - Vamos por partes: o presidente quando se referiu semana passada na reunião com os presidentes dos países amazônicos, lá ele disse que a floresta não está queimando. E realmente a floresta não está queimando. O que está pegando fogo hoje é aquela área que já foi desmatada, e aí cresce mato de novo, o pessoal corta, taca fogo.

Nós temos um processo rudimentar ainda de lidar com a terra naquela região, porque a imensa maioria das pessoas que estão lá não tem seu título de terra, então não tem acesso a financiamento, não tem acesso a assistência técnica rural e, como consequência, tratam a terra da pior forma possível. Esse é um problema que nós temos que resolver, que está se arrastando há 30, 40 anos e nós não conseguimos ainda transpor a linha de partida nisso aí.

No caso do Salles, era uma questão de metas, de uns índices do Ministério da Economia, que terminou sendo mal interpretada, porque ele não pode mudar a lei. O nosso Código Florestal é muito claro: qualquer propriedade na Amazônia tem que ter 80% preservado e 20% pode ser explorado. Se o cara avançar nos 80% ele vai ser multado, vai ter que regenerar o que ele desmatou.

Então, essa situação é muito clara. Nós estamos aqui para fazer valer a lei. A lei diz isso, então vamos fazer valer a lei. E buscar manter os 84% de Amazônia que temos ainda de floresta da forma como ela está.

'Nós vivemos na democracia plena', garante o vice-presidente Hamilton Mourão em entrevista à BBC News Brasil
'Nós vivemos na democracia plena', garante o vice-presidente Hamilton Mourão em entrevista à BBC News Brasil
Foto: BBC News Brasil

BBC News Brasil - Uma reportagem da revista Piauí afirma que, no dia 22 de maio, após o ministro do STF Celso de Mello consultar a PGR para saber se deveria ou não mandar apreender o celular do presidente e do seu filho Carlos Bolsonaro, o presidente teria dito a ministros que iria intervir no STF. O senhor tem conhecimento desta reunião? Isto aconteceu? Por que ninguém do governo se posicionou sobre isso até agora?

Mourão - Eu soube dessa reunião por meio da reportagem da Piauí, que eu também não li, vi a repercussão dela em outros veículos da nossa imprensa.

Eu acho difícil o presidente ter dito isso, porque, como é que ele vai intervir no STF? Não há condições, nós vivemos na democracia plena. Nosso sistema, como todo sistema democrático tem suas imperfeições, muito mais em função dos homens que ocupam os cargos em determinado momento do que do sistema propriamente dito.

Eu acho que isso aí é meio "sonho de uma noite de verão".

BBC News Brasil - O presidente disse em uma live há um mês que torce pela vitória de (Donald) Trump nas eleições americanas, na disputa contra Joe Biden agora em novembro. O senhor também torce pela vitória de Trump? Como o senhor vê isso?

Mourão - Como admirador dos Estados Unidos, torço para aquele país. Se os Estados Unidos estiverem bem, em paz consigo mesmo, que hoje eu não vejo que esteja em paz consigo mesmo - essa questão do tribalismo, que afeta o mundo todo, afeta particularmente aquele país.

Mas se os Estados Unidos estiverem bem, o resto do mundo também estará bem. E nós, na América Latina, que vemos a democracia americana como um farol para as nossas, com os valores e princípios de democracia, capitalismo, Estado de Direito, sociedade civil forte...

Eu torço para que a aconteça o melhor para aquele país e que eles emerjam desse processo eleitoral menos divididos do que estão hoje.

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