Acolhimento às vítimas de violência fica nas mãos de ONGs
Previsto por lei, atendimento humanizado é ignorado pelo Estado e mulheres que sofreram violência doméstica buscam o terceiro setor
As madrugadas da economista Caroline Moraes ganharam uma rotina diferente durante a quarentena. O sono tranquilo deu lugar para um estado de alerta para os pedidos de ajuda - que antes costumavam acontecer em horários mais convencionais, e agora não seguem mais essa lógica. Fundadora de uma ONG que oferece apoio à mulheres vítimas de violência doméstica, Nós Mulheres, ela precisou adaptar o atendimento à pandemia do novo coronavírus.
“Com o isolamento, tudo ficou mais particular. Tivemos que pensar em formas diferentes de fazer contato de maneira que contemplasse às necessidades da mulher. Se tem um homem ali, 24 horas colado nela, a gente tem que oferecer meios para que ela consiga pedir socorro em algum momento”, explica ela, que passou a receber ligações enquanto o agressor está dormindo, ou diretamente do banheiro, quando a mulher consegue abafar o som da ligação com o barulho do chuveiro.
Embora os registros de lesão corporal dolosa em decorrência da violência doméstica tenham diminuído 27,2% de março a maio comparado ao mesmo período do ano passado, conforme o último levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a violência em si não só não deu trégua, como também aumentou. Os pedidos de ajuda chegaram a disparar em canais oficiais de denúncia, e projetos sociais que trabalham com o acolhimento às vítimas se tornaram mais necessários do que nunca nesse momento.
O Instituto Maria da Penha (IMP), referência quando se trata de organizações não governamentais que se dedicam ao tema, reforça a importância de grupos que se preocupam em garantir os Direitos Humanos, sobretudo, o direito da mulher, durante a pandemia.
Regina Célia Barbosa, vice-presidente e co-fundadora do IMP, conta que houve um aumento na procura pelo IMP desde o início do isolamento social e entre os principais motivos, segundo ela, estão a dificuldade para se dirigir a uma delegacia e prestar queixa, além da ineficiência do serviço telefônico do governo, seja pela demora ou falta de treinamento dos atendentes da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180).
“Muitos serviços adicionais que foram disponibilizados pelo governo não vieram acompanhados de instruções, que pudessem proporcionar mais celeridade e confiança à mulher na hora de pedir socorro”, observa ela, baseada nos relatos dos atendimentos do instituto. Essas características passam sensação de abandono e só pioram a situação da vítima, que precisa de suporte.
Pensando nisso, o IMP passou a disponibilizar um núcleo de referência online com psicólogas, advogadas e assistentes sociais para fazer o acolhimento adequado que o Estado não oferece. A organização também expandiu sua atuação para além de Recife, em Pernambuco, onde fica localizada. “Se de um lado nós tivemos os profissionais de saúde que foram aclamados por combater a covid-19, por outro lado tivemos o terceiro setor que foi sensível e não parou em nenhum momento de acolher essas mulheres”.
“Também percebemos um aumento significativo na demanda”, reforça a criadora do Nós Mulheres, que também é pesquisadora de violência de gênero. “No início da pandemia a gente chegou a receber [ligações] em um dia equivalente ao que a gente recebia em um mês”. Ela e um pequeno grupo de mulheres que prestam serviço à ONG se organizam para oferecer atendimentos humanizados, com tratamento humanizado e acolhedor às mulheres que moram na região da baixada fluminense, no Rio de Janeiro.
Acolher para não revitimizar
Trabalhar com vítimas de violência doméstica e, principalmente, com foco em oferecer a elas um atendimento acolhedor aconteceu depois que Caroline viu a notícia sobre a jovem gaúcha Gisele Santos, que sofreu uma sequência de violências, incluindo ter os cabelos cortados e mãos amputadas pelo ex-marido que não aceitou o fim da relação. “Fiquei pensando no tipo de experiência traumática que ela havia vivido e na necessidade de um tratamento para a saúde mental para que ela se reabilitasse”, lembra. A partir daí, a economista passou a se dedicar para ajudar mulheres de forma respeitosa e afável a evitar que elas passem pelo mesmo que Gisele.
Por telefone ou Whatsapp, mulheres entram em contato com a ONG e passam por uma triagem. “Em um primeiro momento a gente ouve e entende o drama que aquela mulher está vivendo, para, a partir disso, encaminhar às profissionais que trabalham em parceria conosco. Então elas passam por um atendimento profissional, com advogadas, psicólogas ou assistente social, e personalizado, sempre com carinho e dedicação àquela mulher que ela já sofreu tanto”.
A atuação é voltada para evitar mais revitimização, ou seja, que a vítima não seja obrigada a reviver a violência em cada passo do processo de denúncia, como acontece em função do próprio sistema Judiciário e da persecução penal a partir do momento que a queixa contra o agressor é registrada.
Somado ao tratamento psicológico, para alguns casos, esse modelo de atendimento é de extrema importância para a recuperação da mulher que passa por situações de violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial.
Nesses casos, ouvir o que a vítima tem a dizer e respeitar suas vontades são valores fundamentais no enfrentamento do trauma, que geralmente envolve também o rompimento de um relacionamento e até mesmo quebra de outras convenções sociais - envolvendo família, filhos, situação socioeconômica - que possuem peso emocional muito grande para quem sofre ou sofreu violência doméstica. “É preciso considerar que essa pessoa está lidando com todo um projeto de vida que não deu certo. O olhar deve estar direcionado para como a pessoa vai viver a partir dali, seja do ponto de vista da sobrevivência financeira, ou emocional”, observa a psicóloga Daniela Silveira Rozados Cepeda, psicóloga clínica e com experiência em atendimento à mulheres vítimas de violência de gênero.
Humanização no Judiciário e Segurança Pública
Esse entendimento também deveria ser presente no Poder Judiciário e na Segurança Pública, já que é previsto e assegurado pela legislação. A Lei Maria da Penha, criada para contemplar vítimas de violência doméstica, reconhece a importância de um sistema que atue de forma que a mulher seja a protagonista e seus cuidados e vontades sejam considerados prioridade.
Ainda segundo a lei, também estabelece-se a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, podendo estes contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar composta de profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e da saúde.
O objetivo da norma, portanto, não é simplesmente punir o agressor. A ideia é muito mais ampla e inclui a criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas, como a concessão de medidas protetivas de urgência e outras ferramentas que devem atuar de forma integrada ao sistema. No entanto, falhas no Poder Judiciário impedem o pleno funcionamento da lei, conforme já foi mostrado pelo Terra.
A advogada e conselheira da da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, admite que a proposta da Lei Maria da Penha ainda não foi compreendida e a voz da mulher continua pouco ouvida. “Há muitos problemas na implementação da lei. Problemas de acolhimento nas Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM) e delegacias comuns, e também problemas no Poder Judiciário e Ministério Público, que não ouvem o que prevê a lei e trabalham com ela na mesma lógica de um processo criminal comum”.
Mas a falta de sensibilidade para a questão não é uma exclusividade dos juízes brasileiros. O sistema de Segurança Pública também não está devidamente preparado para oferecer um tratamento humanizado à mulher que pede socorro.
“Casos de violência doméstica sempre estão no topo da lista de chamados pelo 190 [Polícia Militar] e geralmente em segundo lugar no ranking das ocorrências”, afirma Juliana Martins, coordenadora institucional do FBSP. Segundo ela, por ser trabalho da polícia atender a vítima, e em muitas das vezes, responsável por fazer o primeiro contato com ela, só reforça a necessidade de uma mudança na atuação da autoridade policial nesses casos.
“Quando a mulher chama a polícia, muitas vezes, ela não quer que o companheiro seja preso. Ela quer apenas que aquela violência cesse. Por isso, quando ela vê que o agressor pode ser prejudicado, ela desiste de formalizar a queixa”, analisa Juliana. Esse comportamento comum entre as mulheres acaba frustrando o policial, que vê como objetivo principal do seu trabalho registrar a ocorrência. “Um fato curioso é que a produtividade do policial é medida de acordo com a quantidade de ocorrências que ele registra. Se isso não acontece, esse policial se sente desmotivado. Ou seja, a própria instituição não dá a devida importância ao assunto e não prepara o agente para um atendimento adequado às mulheres”.
Compreender que a vítima não necessariamente deseja denunciar o agressor, sem julgamentos, também faz parte de um tratamento humanizado. “É muito comum na militância feminista a gente querer que a mulher se liberte do relacionamento e denuncie o agressor, afinal, aprendemos que isso é fundamental para o empoderamento e autonomia dela”, aponta Daniela. Mas a psicóloga lembra também que é preciso respeitar o tempo de cada uma e que nem sempre esse processo acontece de imediato. “Às vezes a vítima só quer ajuda para passar por aquela situação e não deseja romper a relação”, diz.
É aí que um atendimento acolhedor faz a diferença para que a mulher se reconheça no relacionamento abusivo e depois queira e consiga sair dele. “Quem
sofre violência doméstica deve ser tratada com delicadeza. Ela deve se sentir amparada, porque se trata de algo muito dolorido de perceber e enfrentar”.