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Aplicativo do Ministério da Saúde recomenda medicamentos sem eficácia comprovada para tratar Covid

20 jan 2021 - 13h55
(atualizado às 17h19)
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Apesar de o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, garantir que o governo não indica o tratamento precoce para a Covid-19, a pasta mantém no ar um aplicativo que indica o uso de medicamentos como cloroquina, ivermectina e azitromicina, que não têm eficiência comprovada contra a doença e que podem provocar efeitos colaterais graves.

Caixas de cloroquina distribuídas pelo Ministério da Saúde no Hospital Conceição, Porto Alegre, Brazil
26/5/2020 REUTERS/Diego Vara
Caixas de cloroquina distribuídas pelo Ministério da Saúde no Hospital Conceição, Porto Alegre, Brazil 26/5/2020 REUTERS/Diego Vara
Foto: Reuters

O aplicativo TrateCov foi lançado no dia 14 deste mês, em Manaus, pelo próprio ministro Pazuello e, de acordo com o ministério, seria indicado para profissionais de saúde. Em nota publicada em sua página, o ministério diz que a plataforma é direcionada a profissionais de saúde para "aprimorar e agilizar os diagnósticos da Covid-19" e ajudar "o atendimento e resposta adequados para o paciente de acordo com cada caso".

No entanto, como mostrou inicialmente o site The Intercept, qualquer pessoa pode acessar o aplicativo. Ao menos por enquanto, nem o aplicativo nem o site exigem identificação ou registro de médico para serem acessados.

O programa exige apenas o preenchimento de dados simples do paciente, como peso e idade, e traz questões sobre sintomas, doenças preexistentes e possível contato com pessoas com diagnóstico de Covid-19. O app não apenas auxilia a encontrar o atendimento adequado, como diz o ministério, mas recomenda o tratamento com os medicamentos.

A Reuters fez seis simulações de pacientes no aplicativo. Independentemente da idade, sintomas ou doenças preexistentes, a recomendação foi sempre a mesma: difostato de cloroquina 500 mg, hidroxicloroquina 200 mg, ivermectina 6mg, azitromicina 500 mg, doxiciclina 100mg, sulfato de zinco e dexametasona.

O aplicativo não permite alterar as dosagens ou retirar um dos medicamentos, independentemente das doenças preexistentes, apesar de alguns medicamentos trazerem riscos. A cloroquina, por exemplo, pode causar arritmia em pacientes com problemas cardíacos. Já a dexametasona traz riscos para pacientes com pressão alta ou diabetes.

O Ministério da Saúde afirmou em nota que o "TrateCov orienta opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada", e aponta que a lista de medicamentos sugeridos pela plataforma pode sofrer alterações "de acordo com os estudos científicos em andamento".

Também declarou que há "total autonomia" do médico para decidir o tratamento do paciente e ressaltu que seu uso é "exclusivo" e "facultativo" por parte de médicos cadastrados. Acrescentou, ainda, que "o diagnóstico e o tratamento sugerido pela plataforma sem a avaliação clínica pelo médico habilitado não possuem validade e não substituem o diagnóstico clínico realizado pelo profissional".

O infectologista José David Urbáez, representante da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), disse que, além de não haver comprovação para o uso dos medicamentos, os efeitos adversos da combinação podem ser graves.

"Já é farto e sabido que a cloroquina e a hidroxicloroquina não tem ação antiviral. O uso somado dos dois está induzindo um potencial elevadíssimo de efeitos adversos graves, inclusive em pacientes cardíacos", disse. "Colocar doxiciclina além de tudo, somada, pode levar a uma hepatite medicamentosa."

APLICATIVO "CRIMINOSO"

Urbáez esclareceu ainda que a doxiciclina não pode ser indicada para menores de 12 anos e gestantes, já que interfere no processo de calcificação e formação dos ossos. Uma das simulações feitas pela Reuters foi para uma criança de 10 anos, e o remédio foi indicado da mesma forma.

De todos os medicamentos indicados pelo ministério no aplicativo, apenas a dexametasona tem comprovação de eficácia no uso contra a Covid-19. O corticóide, no entanto, é indicado apenas para casos graves, de pacientes internados e em entubação, e não para casos leves.

"O uso indiscriminado, fora do ambiente hospitalar, pode induzir na verdade um aumento da multiplicação do vírus no organismo e esse indivíduo pode evoluir para caso grave por causa do medicamento", explicou Urbáez. "É absolutamente irresponsável e criminoso esse aplicativo."

O infectologista afirmou que, mesmo que seja apenas indicado a médicos, o aplicativo é um desserviço e um risco.

"Nem todos os médicos têm a mesma formação, o mesmo nível de conhecimento. Esse aplicativo é o ministério induzindo o uso de medicamentos sem comprovação e que trazem riscos", afirmou

O chamado tratamento precoce com medicamentos que não têm eficiência comprovada contra Covid-19, principalmente a cloroquina, é defendido arduamente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich deixaram o governo no ano passado por se recusarem a fazer um protocolo de uso da cloroquina, entre outras divergências com o presidente.

Pazuello, ainda como ministro interino, autorizou a publicação de um guia chamado de "Orientações para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da Covid-19". Por não haver comprovação científica e experimentos relevantes na área, o ministério não pode fazer um protocolo, que tem poder legal.

Esta semana o ministro afirmou, em entrevista, que nunca havia indicado o tratamento precoce, apenas "atendimento precoce." O ministro, que não é médico, alegou que como leigo pode ter usado "o nome errado", mas garantiu que o ministério não tem protocolo e que cabe aos médicos decidir quais medicamentos serão prescritos.

Ainda assim, na semana passada, em ofício enviado ao governo de Manaus, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, pediu autorização para visitar Unidades Básicas de Saúde em Manaus "para que seja difundido e adotado o tratamento precoce como forma de diminuir o número de internamentos e óbitos."

Mayra diz ainda que, diante da gravidade da situação em Manaus, "é inadmissível" a não adoção do tratamento precoce, acrescentando que existiriam "comprovações científicas" sobre o uso do medicamento.

No domingo, ao aprovar o uso emergencial das vacinas CoronaVac e AstraZeneca contra a Covid-19, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) citou a ausência de tratamentos disponíveis contra a Covid-19 como uma das razões a justificar o início da vacinação antes do registro definitivo dos imunizantes.

Nesta quarta-feira, o Conselho Nacional de Saúde enviou um ofício ao gabinete do ministro pedindo que sejam suspensas as orientações de tratamento precoce que ainda são usadas pelo ministério.

"O Conselho Nacional de Saúde, solicita ao Exmo. Ministro da Saúde a revogação de qualquer instrumento (Nota Técnica, Nota Informativa, Orientações, Protocolos ou Ofícios) que possa indicar o tratamento precoce com a aplicação de medicamentos cuja eficácia e segurança para a Covid-19 não está estabelecida cientificamente e nem aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa, no sentido de contribuir para a melhoria na orientação à sociedade sobre as medidas eficazes no enfrentamento à pandemia da Covid-19 no país", diz a mensagem, que ainda não foi respondida pelo ministério.

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