Após derrota na Câmara, governo enfrenta desafio de aprovar ajuste fiscal
Mariana Schreiber
Da BBC Brasil em Brasília
Para apoiar ajustes fiscais, PMDB exige que parlamentares do partido que não votem a favor das medidas sejam punidos
Após sofrer uma importante derrota na noite de ontem, o governo de Dilma Rousseff tem pela frente nesta quarta-feira aquele que talvez seja o maior desafio de seu segundo mandato até o momento no Congresso Nacional: a aprovação das polêmicas propostas de ajuste fiscal.
As medidas são consideradas essenciais pela presidente para reorganizar as finanças públicas e permitir a retomada do crescimento econômico. A meta inicial era economizar R$ 18 bilhões neste ano, mas as propostas já sofreram alterações na Câmara que podem reduzir esse valor à metade.
A expectativa é que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, coloque hoje em votação a medida provisória (MP) 665, que muda as regras para pagamento de seguro-desemprego, abono salarial e seguro-defeso (benefício dado a pescadores artesanais no período de reprodução dos peixes). A MP 664, que altera o pagamento de pensões, foi aprovada ontem por uma comissão especial e também está pronta para ser votada em plenário.
A apreciação da MP 665 estava prevista para ontem de noite, mas a grande controvérsia em torno do assunto acabou provocando seu adiamento. Pesou na postergação da votação o pronunciamento do ex-presidente Lula, durante propaganda do PT terça à noite, atacando o Congresso pela aprovação da ampliação da possibilidade de terceirização dos trabalhadores pelas empresas.
Grande defensor da ampliação da terceirização, Cunha ficou enfurecido e por isso decidiu adiar a votação do ajuste fiscal e colocar em pauta a PEC da Bengala. Essa proposta de emenda constitucional, que eleva de 70 para 75 anos o teto de aposentadoria dos ministros do STF, foi aprovada, retirando do governo petista a certeza de que faria mais cinco nomeações no segundo mandato de Dilma - uma enorme derrota para ela e seu partido.
Desafio
A presidente tentou mostrar confiança na manhã desta quarta de que o ajuste fiscal será aprovado: "Tenho certeza de que haverá, por parte dos parlamentares, a sensibilidade necessária para que se vote o ajuste", disse Dilma, após o lançamento do Plano de Defesa da Agropecuária, no Palácio do Planalto.
A aprovação do ajuste fiscal sofre resistência dentro do próprio PT, já que parte do partido critica o fato do ajuste estar recaindo sobre os trabalhadores. Sem querer arcar sozinho com o ônus da aprovação de medidas impopulares e incomodado com o ataque feito por Lula, o PMBD na Câmara pressiona o partido da presidente a dar apoio integral às medidas.
Ontem, após reunião tensa entre a bancada petista e quatro ministros de Dilma - Carlos Gabas (Previdência), Miguel Rossetto (Secretaria-Geral da Presidência da República), Pepe Vargas (Direitos Humanos, ex-articulador político do governo) e Ricardo Berzoini (Comunicações) - os deputados do PT concordaram em votar a favor das medidas, convencidos de que uma derrota seria algo gravíssimo para o governo.
No entanto, após a fala de Lula na noite de ontem, o PMDB agora exige mais para apoiar as MPs: quer que o PT "feche questão" na votação – o que significa que o parlamentar que não cumprir a orientação do partido de aprovar as medidas poderá ser punido.
"Não votaremos a MP 665, não mais, até que o PT nos explique o que quer. Se for o caso, feche questão para votação das matérias do ajuste fiscal. Se não for assim, não contem conosco. Se há dúvidas e se o país não precisa desse remédio amargo, não vamos empurrar essa conta no trabalhador", disse ontem de noite o líder do PMDB, deputado Leonardo Picciani (RJ).
Segundo a Agência Câmara, Picciani falou depois que parlamentares do PMDB o procuraram por terem ficado "desconfortáveis" em apoiar a medida após a fala de Lula na propaganda partidária do PT. "Vamos seguir a orientação do ex-presidente Lula: vamos combater a retirada do direito dos trabalhadores", disse.
Qual o motivo do ajuste?
A intenção do governo de restringir o acesso ao seguro-desemprego já vinha sendo discutida desde o primeiro mandato de Dilma, ainda quando Guido Mantega estava à frente do Ministério da Fazenda, diante das sucessivas dificuldades que o governo vem tendo para alcançar as metas anuais de economia, o superávit primário.
O objetivo dessa economia é pagar juros da dívida pública, evitando que ela cresça em proporção ao PIB. A estabilidade da dívida é considerada importante para manter a oferta de crédito para o governo, a juros menores. Seu crescimento descontrolado, pode afastar investidores dos títulos públicos, elevando as taxas pagas pelo Tesouro Nacional.
As MPs 664 e 665 foram finalmente editadas no fim do ano passado, quando Joaquim Levy já havia sido anunciado como sucessor de Mantega.
Nesta manhã, o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, fez uma apresentação na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. Segundo gráficos apresentados, o pagamento de seguro-desemprego passou de R$ 6,6 bilhões em 2003 para R$ 36 bilhões em 2014, alta nominal (sem descontar a inflação do período) de 445%. Já o repasse de abono salarial subiu 783% no mesmo período, de R$ 1,8 bilhão para R$ 15,9 bilhão.
Soa contraditório que o seguro-desemprego tenha aumentado tanto justamente na década em que o desemprego recuou significativamente no país. Mas economistas apontam alguns fatores que explicam esse aumento - de uma lado, houve forte expansão da formalização no mercado de trabalho no país, o que significa que mais gente têm carteira de trabalho assinada e pode acessar o benefício em caso de demissão. E, por outro lado, embora o desemprego esteja historicamente baixo, o país continua tendo alta taxa de rotatividade no mercado de trabalho.
Além disso, o governo suspeita da existência de fraudes. Para Levy, as alterações podem ter o efeito de reduzir a rotatividade, incentivando a qualificação profissional dos trabalhadores.
O abono salarial, nas regras anteriores a MP, dava direito a um salário mínimo para pessoas de baixa renda que trabalhassem formalmente pelo menos um mês no ano - é fácil entender o crescimento desse benefício, portanto, se lembrarmos que a maior parte das vagas formais geradas na última década foram exatamente posições para faixas de renda mais baixas.
No caso das mudanças no pagamento das pensões pela Previdência Social, Levy afirma que são ajustes para conter "distorções e excesso", como no caso de benefícios vitalícios recebidos mesmo por pessoas que teriam condições de trabalhar.
"Se você se torna viúvo, em certa idade, não precisa ter a pensão a vida inteira. Fizemos um ajuste em que (...) quanto maior for sua expectativa de vida, menor será o tempo que você receberá a pensão, porque acreditamos que você tem tempo para ir ao mercado e construir a sua própria pensão", afirmou o ministro, em uma das várias ocasiões em que defendeu seu pacote fiscal.
Críticas
No entanto, os críticos das medidas - como centrais sindicais, partidos à esquerda do governo como o PSOL, e mesmo membros do PT - argumentam que o ajuste fiscal deveria recair sobre a parcela de maior renda da população, com taxações mais elevadas de grandes fortunas e da transmissão de herança. Alguns também questionam se cortar despesas do governo realmente resultará em mais crescimento.
Em entrevista recente à BBC Brasil, o economista Paul Singer, um dos fundadores do PT e atualmente secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, diz que não vê necessidade do ajuste ser feito "às carreiras", ou seja, apressadamente.
"O governo não pode ficar em déficit indefinidamente, mas se fica um, dois ou três anos, não tem problema algum. Eu não tenho nada contra ajuste fiscal quando não é feito às carreiras, brutalmente como está sendo feito, o que aprofunda a situação de crise em que está a economia", disse.
"O prioritário seria fazer o ajuste com aumento de receita do governo (vinda) da parte rica da sociedade. A parte rica está sendo poupada. Não é verdade que os impostos que eles pagam é absurdo. Pelo contrário, pagam relativamente menos que a parte mais modesta da população", acrescentou.
O que pode mudar?
Ministro da Fazenda defende que ajustes irão "corrigir distorções" e incentivar qualificação de trabalhadores
As MPs editadas pelo governo sofreram alterações nas comissões especiais da Câmara.
Inicialmente, a medida 665 previa que o trabalhador só teria direito a acessar pela primeira vez o seguro-desemprego se tivesse trabalhado ao menos 18 meses nos últimos 24 meses. O texto alterado reduziu o tempo mínimo para ao menos 12 meses de trabalho nos 18 meses anteriores.
A regra atual oferece uma proteção bem maior ao permitir o recebimento do seguro caso o profissional demitido tenha trabalhado seis meses seguidos.
Para pedidos posteriores de seguro-desemprego, a proposta do governo foi mantida na Câmara - o profissional terá que ter trabalhado seis meses seguidos antes da demissão. Atualmente, precisa ter trabalhado pelo menos seis meses, mesmo que não consecutivos, nos últimos três anos.
No caso do abono salarial, hoje trabalhador de baixa renda precisa trabalhar um mês formalmente no ano para receber um salário mínimo. A proposta do governo elevava a exigência de trabalho de um mês para 180 dias e estabelecia que o pagamento seria proporcional ao tempo trabalhado, assim como ocorre com o décimo terceiro salário pago pelas empresas.
A comissão especial da Câmara manteve proposta de proporcionalidade, mas reduziu para 90 dias o tempo mínimo necessário de trabalho formal para o trabalhador ter direito ao benefício.
Pensões
Já no caso da MP 664, que trata das pensões, o texto aprovado ontem reduziu o tempo de contribuição que passaria a ser exigido para que o cônjuge pudesse obter pensão por morte de 24 para 18 meses. A medida também exige um tempo mínimo de dois anos de casamento ou união estável.
Antes da MP, não havia exigência alguma de tempo mínimo de contribuição - bastava que o segurado estivesse contribuindo para a Previdência Social.
A comissão especial também derrubou o artigo da MP que reduzia pela metade o valor das pensões por morte. Assim, o benefício pago aos pensionistas continuará sendo o valor da aposentadoria que o segurado recebia ou teria direito a receber se estivesse aposentado por invalidez na data da morte.
Já a duração do pagamento dos benefícios passou a ser definida no novo texto pela idade do cônjuge, não por sua expectativa de vida, como propôs o governo. De 21 a 26 anos, o parceiro terá direito a seis anos; de 27 a 29, a dez anos; de 30 a 40, a 15 anos; de 41 a 43 anos, 20 anos e, a partir do 44 anos, a pensão será vitalícia.
Em relação ao auxílio-doença, o relatório mantém a obrigação de a empresa pagar ao seu empregado o salário durante os primeiros 30 dias de afastamento, o dobro do que previa a legislação anterior à MP. Antes, o benefício era pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) ao trabalhador que ficasse mais de 15 dias afastado das atividades.
Caso sejam aprovadas pela Câmara, as MPs ainda terão que passar no Senado.