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As estratégias do governo Lula para lidar com Javier Milei

Integrantes do governo brasileiro com quem a BBC News Brasil conversou avaliam que será preciso aferir se retórica de campanha de Milei se converterá em medidas concretas.

21 nov 2023 - 06h18
(atualizado às 07h55)
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Politicamente, Lula é considerado um político de esquerda que defende a atuação do Estado para induzir o crescimento econômico
Politicamente, Lula é considerado um político de esquerda que defende a atuação do Estado para induzir o crescimento econômico
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Cautela, pragmatismo e paciência. É assim que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deverá lidar com o presidente eleito da Argentina, Javier Milei, segundo quatro integrantes do governo brasileiro com quem a BBC News Brasil conversou após a vitória do ultraliberal sobre o peronista e ministro da Economia, Sergio Massa, no segundo turno das eleições presidenciais, no domingo (19/11).

O clima de aparente tensão apreensão após o anúncio da vitória de Milei deve-se, em parte, pelas diferenças políticas entre o argentino e Lula e também por conta das declarações de Milei sobre Lula que foram consideradas ofensivas por integrantes do governo brasileiro.

Politicamente, Lula é considerado um político de esquerda que defende a atuação do Estado para induzir o crescimento econômico e em políticas assistenciais para beneficiar a população mais pobre.

Milei, por outro lado, se autointitula como um adepto do "anarcocapitalismo", uma corrente filosófica que defende um modelo de capitalismo praticamente sem regulação do Estado.

Além das diferenças políticas, nos últimos meses, declarações de Milei sobre Lula causaram mal-estar junto ao governo brasileiro.

Em 2022, Milei declarou seu apoio ao então candidato Jair Bolsonaro (PL) e chamou Lula de "presidiário".

"Javier Milei aos brasileiros: votem em Bolsonaro e não deixem avançar o presidiário Lula", disse Milei em uma postagem no X, antigo Twitter.

Em setembro deste ano, Milei disse que Lula não entraria no grupo de "defensores da liberdade" durante uma entrevista ao jornalista americano Tucker Carlson.

"Eu sou um defensor da liberdade, da paz e da democracia. Os comunistas não entram aí. Os chineses não entram aí. [Vladimir] Putin não entra aí. Lula não entra aí", disse o então candidato.

Lula não rebateu diretamente o político argentino, mas na segunda-feira, o ministro das Comunicações, Paulo Pimenta, disse que o petista só deveria ir à posse de Milei, no dia 10 de dezembro, se o argentino pedisse desculpas ao presidente brasileiro.

Pragmatismo

Um dos termos mais utilizados por diplomatas que acompanham as repercussões da vitória de Milei sobre o governo brasileiro é "pragmatismo".

Eles avaliam que há fatores domésticos e internacionais que deverão "modular" a ação de Milei quando assumir o poder, o que poderia ser benéfico ao Brasil.

Apesar da declaração de Pimenta, diplomatas e assessores políticos com quem a BBC News Brasil conversou disseram que o momento não é de tensionar as relações com o governo argentino e que é preciso aguardar os próximos passos de Milei. .

Segundo eles, os canais com a equipe de Milei estão funcionando desde a campanha, e os contatos foram feitos, primordialmente, pela embaixada do Brasil na Argentina.

Reuniões entre diplomatas brasileiros e pessoas ligadas à campanha foram realizadas nos últimos meses, mas nenhum encontro está agendado para os próximos dias, segundo apurou a BBC News Brasil.

Um primeiro contato entre membros da equipe de Milei após a vitória poderia ocorrer no Rio de Janeiro, entre os dias 6 e 7 de dezembro, durante a Cúpula do Mercosul, que reunirá chefes de Estado do bloco.

Entretanto, segundo o protocolo, a equipe de Milei só poderia comparecer ao evento se fosse convidada pela delegação oficial argentina, que ainda será comandada pelo atual presidente, Alberto Fernández.

Além das declarações polêmicas sobre Lula e outros líderes mundiais, Milei também ficou conhecido por propostas consideradas por analistas como radicais na área econômica, algumas delas com possíveis efeitos sobre o Brasil.

Entre elas estão a dolarização da economia, a extinção do Banco Central e a saída da Argentina do Mercosul, bloco econômico que também inclui o Brasil, Uruguai e Paraguai.

Entre esses fatores estão: a conexão econômica do Brasil e a da Argentina, que são importantes parceiros comerciais um do outro; a necessidade de Milei formar uma maioria no Congresso para conseguir aprovar suas propostas.

Para o Brasil, a Argentina é o terceiro principal destino de suas exportações, atrás da China e dos Estados Unidos.

Nos últimos anos, as vendas brasileiras para os argentinos foram constituídas mais de 80% por manufaturas de origem industrial, tornando o país vizinho o principal destino desses bens.

Já no caso da Argentina, o Brasil é o maior destino de suas vendas externas, seguido por Estados Unidos e China.

Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) brasileiro mostram que, em 2022, Brasil exportou US$ 15,3 bilhões (aproximadamente R$ 74 bilhões) em produtos e serviços. Isso é o equivalente a 4,5% de todas as exportações brasileiras no período.

Dados de comércio argentino mostram que o Brasil é destino de 14,3% de todas as exportações.

No mesmo ano, o Brasil importou US$ 13,09 bilhões (R$ 63 bilhões), o que gerou um saldo positivo para o Brasil de US$ 2,21 bilhões (R$ 10 bilhões).

No campo político, a composição do Congresso deve impor dificuldades para Milei. Na Câmara dos Deputados, o total de assentos é 257. Para obter maioria, são precisos 129. O partido de Milei, o La Libertad Avanza, tem apenas 38 cadeiras na Casa. Estimativas apontam que, com o apoio outros partidos de direita, ele pode chegar a ter o apoio de 90 deputados. O partido de Massa, Union por la Patria, obteve 108 vagas.

No Senado, a situação também é adversa para Milei. A coalizão entre os partidos de Milei e do ex-presidente Maurício Macri obteve 13 senadores contra 35 da coligação que apoiou Massa.

"Do nosso lado, não tem a menor dúvida, haverá pragmatismo", disse o assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, em entrevista à emissora Globonews na segunda-feira.

"É natural , digamos, quando você tem afinidade, que as coisas progridem mais (...) Mas, digamos, que a diferença ideológica não é um impedimento", complementou Amorim.

O embaixador do Brasil na Argentina, Julio Bitelli, disse acreditar que a "profundidade" das relações políticas e econômicas entre os dois países será capaz de "superar" eventuais divergências políticas entre Lula e Milei.

"A relação bilateral é de tal dimensão e tal profundidade que ela deve ser capaz de resistir a qualquer alteração de governo de um país ou de outro", disse o diplomata à BBC News Brasil.

"Temos uma agenda bilateral complexa de interesses dos dois países e isso só tende a causar benefícios a ambos os países se for aprofundada."

Além do volume comercializado, analistas apontam que há uma intensa complementaridade entre as duas economias, especialmente em setores industriais como o automotivo.

Um assessor da equipe econômica do governo brasileiro disse à BBC News Brasil em caráter reservado que o país não espera mudanças bruscas na política industrial da Argentina justamente por conta dessa interdependência.

Segundo ele, especialmente no setor automotivo, o Brasil precisa de peças fabricadas pelos argentinos, e os vizinhos precisam que o Brasil continue fabricando automóveis para consumir seus produtos.

Milei se autointitula como um adepto do anarcocapitalismo, uma corrente filosófica que defende um modelo de capitalismo sem regulação do Estado
Milei se autointitula como um adepto do anarcocapitalismo, uma corrente filosófica que defende um modelo de capitalismo sem regulação do Estado
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Cautela

Esse mesmo assessor econômico afirmou que, apesar da retórica de Milei durante a campanha, o Brasil deveria se manter cauteloso em relação aos nomes da equipe que está sendo montada por Milei.

A expectativa é de que o ministro da Economia de seu governo seja um nome próximo ao ex-presidente Maurício Macri, um político de centro-direita considerado por analistas políticos como relativamente moderado em comparação a Milei.

A indicação de um nome ligado a Macri seria uma espécie de retribuição ao apoio do ex-presidente à sua candidatura no segundo turno e uma sinalização de estabilidade para os mercados.

Essa cautela também se aplica, por exemplo, às expectativas em torno da negociação do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

O acordo começou a ser negociado em 1999 e, em 2019, foi praticamente finalizado.

Entretanto, ele precisa ser concluído e aceito por todos os países envolvidos para entrar em vigor.

As negociações entre os dois blocos ficaram travadas neste ano depois que a União Europeia enviou um conjunto de exigências que previam sanções a produtos do Mercosul com base em descumprimento de metas ambientais.

O Brasil considerou as exigências ambientais europeias exageradas, enviou uma contraproposta e, agora, a expectativa é de que a negociação do acordo seja concluída até o final deste ano.

O temor de alguns atores econômicos, no entanto, era de que a vitória de Milei poderia colocar em risco a conclusão do acordo, como disse à BBC News Brasil o diretor da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, Federico Servideo.

"Minha principal preocupação é que esse desalinhamento ideológico prejudique o relacionamento comercial e que, inclusive, possa vir a prejudicar a convalidação do acordo entre Mercosul e União Europeia e isso pode vir a acontecer", disse Federico Servideo.

Isso ocorreria porque o presidente-eleito disse, durante a campanha, que o bloco era um "estorvo" e defendeu a saída da Argentina do grupo.

À Globonews, Celso Amorim disse que, se Milei cumprir a promessa de tirar a Argentina do bloco, a principal prejudicada seria a própria Argentina.

"Mas isso é uma opinião minha. A Argentina é um país soberano e fará o que ela achar que deve. Agora, vamos lamentar muito, porque isso afetará a estratégia", disse o diplomata.

"O Brasil terá que redefinir um pouco sua estratégia na região, mas, volto a dizer, eu acho que a principal prejudicada seria a Argentina e acho que os empresários argentinos certamente se colocarão contra as hipóteses."

Apesar disso, o embaixador brasileiro Julio Bitelli diz que a expectativa do governo Lula é de que a Argentina continue no bloco.

"Em relação ao Mercosul, houve uma evolução das referências feitas ao longo da campanha. Em vez de falar em sair do Mercosul, a campanha passou a falar sobre atualizar o bloco. E o Brasil pode, sim, trabalhar para melhorar o funcionamento do bloco", disse o diplomata.

Bitelli diz que o Brasil trabalha para que o acordo seja finalizado até o final do ano, mas que isso não seria uma medida para evitar que Milei pudesse prejudicar seu andamento.

"Não há uma relação direta ou um temor de que, se o acordo não for assinado agora, não será nunca mais. O que temos foi uma evolução das negociações para que ele seja finalizado", disse o diplomata.

Para o Brasil, a Argentina é o terceiro principal destino de suas exportações, atrás da China e dos Estados Unidos
Para o Brasil, a Argentina é o terceiro principal destino de suas exportações, atrás da China e dos Estados Unidos
Foto: EPA-EFE/REX/Shutterstock / BBC News Brasil

Paciência

O assessor da área econômica do governo brasileiro com quem a BBC News Brasil conversou disse que a gestão petista está consciente de que terá de atuar com paciência com sua contraparte argentina.

Segundo ele, Milei se popularizou por ter um estilo incisivo em sua comunicação com seu eleitorado e, por isso, a expectativa é de que ele possa subir o tom em determinados pontos de sua agenda nos próximos meses.

A expectativa é de que Milei possa voltar à carga em suas críticas a países como a China e ao Brasil, o que demandaria um esforço diplomático para, em suas palavras, não cair em eventuais provocações.

Essas "provocações" poderiam ser feitas com uma forma de acenar à sua base mais fiel em momentos de desgaste político interno.

O diplomata Julio Bitelli diz que ofensas ou eventuais provocações não "ajudam" a criar um clima favorável entre os dois países.

Mas Bitelli avalia ser preciso aguardar os próximos meses para saber se a retórica de Milei durante a campanha em relação ao Brasil vai virar realidade após tomar posse.

"Precisamos distinguir o que foi a campanha eleitoral e o que será a política do governo uma vez que ele esteja instalado", disse o diplomata à BBC News Brasil.

"As indicações que recebi de pessoas próximas ao presidente-eleito é de que as relações com a Argentina com o Brasil serão mantidas no seu atual grau de importância."

O assessor da equipe econômica com quem a BBC News Brasil conversou apontou, no entanto, um outro fator que exigirá habilidade da diplomacia brasileira em sua relação com a Argentina: uma eventual vitória do republicano Donald Trump nas eleições americanas no ano que vem.

Segundo ele, o raciocínio é de que um governo republicano poderia conferir ainda mais respaldo internacional a Milei e encorajá-lo em suas críticas ao Brasil.

Trump foi um dos políticos que elogiaram Milei por sua vitória nas eleições. Durante sua campanha, o argentino se colocou como um aliado preferencial dos Estados Unidos e de Israel, em contraposição à China e à Rússia.

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