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As histórias do 'país que não está no retrato' cantadas pelo samba da Mangueira

Escola joga luz sobre heróis apagados da história brasileira e sobre lutas de negros, indígenas e mulheres ao longo dos séculos após descobrimento.

3 mar 2019 - 16h42
(atualizado às 19h01)
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Samba da Mangueira joga luz sobre heróis apagados da história brasileira e sobre lutas de negros, indígenas e mulheres ao longo dos séculos após descobrimento
Samba da Mangueira joga luz sobre heróis apagados da história brasileira e sobre lutas de negros, indígenas e mulheres ao longo dos séculos após descobrimento
Foto: Leo Queiroz / BBC News Brasil

A Estação Primeira de Mangueira desfila neste ano se propondo a contar o "avesso" da história do Brasil - com um samba-enredo que joga os holofotes do Sambódromo sobre heróis "apagados" da história e sobre as lutas de negros, indígenas e mulheres ao longo dos séculos após o descobrimento.

"A falta de conhecimento da história gera uma nação que não se reconhece como protagonista de absolutamente nada", diz Leandro Vieira, o carnavalesco responsável pelo enredo, "História pra ninar gente grande". Ele busca lançar luzes sobre heróis que refletem a maioria da população do país e as suas raízes.

"Quando não são destacados nas páginas dos livros de história, essas figuras acabam não sendo popularizados no inconsciente coletivo", diz Vieira à BBC News Brasil.

São figuras como Cunhambebe, líder dos tamoios na resistência à ocupação portuguesa no litoral do sudeste no século 16; Luiza Mahin, ex-escrava que teria se tornado uma liderança nas lutas contra a escravidão na Bahia no início do século 19; e Chico da Matilde, um jangadeiro negro no Ceará que ficou conhecido como o Dragão do Mar após liderar uma paralisação de jangadeiros, negando-se a fazer o transporte dos navios negreiros que chegavam no porto, no século 19.

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Foto: Divulgação/ Mangueira / BBC News Brasil

"Brasil, meu dengo/ A Mangueira chegou/ Com versos que o livro apagou/ Desde 1500/ Tem mais invasão do que descobrimento/ Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado/ Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato", diz o samba, de autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.

"Chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês", proclama, fazendo homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio em março de 2018.

Vieira diz que as escolas de samba sempre exaltaram as narrativas oficiais da história, e estudou os períodos mais retratados no Sambódromo ao longo das décadas - o descobrimento, a República, a Independência e a abolição da escravatura. "Fui olhar para o protagonismo popular nesses quatro momentos, mas percebi que era nulo, ausente, e desenvolvi a minha pesquisa histórica em cima disso", afirma.

A escola verde-e-rosa luta por seu 20º título neste carnaval, mas antes mesmo do desfile pelo Grupo Especial virou o fenômeno que os carnavalescos sonham todos os anos. O samba caiu na boca do povo, cantado em festas, blocos e nas ruas, e com trechos estampados em camisetas.

Mas muitos não conhecem todas os nomes e as referências históricas contidas em versos como: "Brasil, o teu nome é Dandara, e a tua cara é de cariri/ Não veio do céu/ Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati." A BBC News Brasil preparou um glossário com algumas das principais figuras apresentadas no samba (veja no fim da reportagem).

Para Vieira, a falta de conhecimento sobre lideranças indígenas alimenta estigmas sobre essa população, como a ideia de que índios seriam preguiçosos ou "indolentes", adjetivo recentemente associado às populações nativas do Brasil pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, enquanto se referia a uma suposta "malemolência" herdada das populações negras.

Para historiador e especialista em carnaval Luiz Antônio Simas, o enredo da Mangueira "é da maior relevância" por lançar um olhar crítico sobre a ideia do protagonismo histórico e destacar personagens do povo - ligados ao cotidiano de qualquer um - que fizeram parte de lutas históricas.

"O enredo vai na linha defendida por Walter Benjamin, grande filósofo e teórico da História, que falava da necessidade de 'escovar a história a contrapelo', ou seja, de tentar mostrar os lados não vinculados à história oficial - das grandes efemérides, e dos heróis consagrados do panteão da pátria", diz Simas, coautor de "Dicionário de História Social do Samba".

Para a historiadora Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coautora de "Brasil: Uma Biografia" (Companhia das Letras, 2015), o enredo reflete as novas perguntas que estão sendo feitas ao passado a partir de questões que estão na ordem do dia.

"A História é uma coisa muito viva. Você sempre viaja para o passado com as perguntas do presente. E as perguntas que ele está fazendo são questões de hoje, como a busca por mulheres que tiveram protagonismo no Brasil", diz.

Para Starling, ele não está buscando apenas o protagonismo popular, mas também o protagonismo de personagens afrodescendentes e indígenas.

"Ele está fazendo uma linda pergunta ao passado: 'quem são os nossos símbolos de liberdade? Onde estão as nossas referências ancestrais tanto na população indígena quanto na negra?' E retorna com personagens como o Dragão do Mar, uma expressão profunda do nosso desejo de liberdade", afirma a historiadora.

Luiz Antônio Simas destaca a importância do carnaval da Sapucaí para pensar a "brasilidade" e o construir narrativas sobre a história e a identidade ao longo das décadas. Ele lembra que esse potencial de resgatar personagens históricos já foi desempenhado no passado, como por exemplo nos anos 1960, quando a Acadêmicos do Salgueiro apresentou uma sucessão de desfiles jogando luz sobre episódios à sombra da história.

"Em 1960, o Salgueiro revolucionou a história dos enredos das escolas de samba trazendo o quilombo dos Palmares. Zumbi dos Palmares é um personagem que chega à avenida antes de chegar as salas de aula", lembra. "Em 1963, Arlindo Rodrigues traz a Xica da Silva. Quem é que falava dela, uma escrava que se transformou em uma mulher livre? Ninguém. A Mangueira já desfilou com o príncipe Obá, o Dom Obá da África, um personagem negro importantíssimo na cidade do Rio no século 19, que lutou na guerra do Paraguai", lembra Simas.

"Aqui e ali, as escolas de samba apresentavam esse viés de contar as histórias pelo avesso, e a Mangueira agora traz isso de uma forma muito intensa, trazendo para o protagonismo personagens pouco mencionados. Isso é da maior relevância, porque rediscute a ideia do protagonismo histórico", ressalta.

Para Leandro Vieira, o Brasil emoldurou muitos "falsos heróis". "Quando o samba fala que tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado, o que proponho é olhar para os mortos, para o sangue por trás de figuras como Duque de Caxias, dos bandeirantes, do Floriano Peixoto, da Princesa Isabel e do Estado brasileiro que permitiu que o Brasil fosse o último pais das Américas a abolir a escravidão", diz o carnavalesco da Mangueira.

Veja abaixo alguns dos personagens e grupos mencionados no samba e no enredo que deu origem à letra.

Cunhambebe

Foi o líder indígena dos tupinambás que habitavam a região entre Cabo Frio, no litoral do Rio, e Bertioga, em São Paulo, no século 16. Esteve à frente da Confederação dos Tamoios, como ficou conhecida a revolta dos indígenas contra os colonizadores portugueses entre 1554 e 1567. Tamoio é a expressão tupi para os indígenas mais velhos. "E ele foi um grande líder dos rebelados tamoios que combateram a presença do colonizador português no litoral", diz o historiador Luiz Antônio Simas.

"Então, é uma outra maneira de você contar a história da fundação do Rio de Janeiro. Houve guerra, o índio não se submeteu passivamente ao colonizador, e Cunhambebe é uma figura emblemática desse processo. Os portugueses tiveram que praticamente exterminar os tupinambás para conseguir vencer", diz.

Heloisa Starling ressalta, entretanto, que Cunhambebe lutou contra os portugueses, mas se aliou aos franceses que se estabeleceram na Baía de Guanabara em 1555, instalando a França Antártica, colônia francesa que existiu no Rio até 1570 com apoio dos tamoios.

Caboclos de Julho

"Salve os caboclos de julho", diz o samba, trazendo para a Marquês de Sapucaí os indígenas que lutaram pela guerra de independência na Bahia. O caboclo é símbolo da independência do Estado da coroa portuguesa, alcançada apenas em 2 de julho de 1823, quase um ano depois da proclamação por Dom Pedro I em 1822, e após batalhas sangrentas para combater os portugueses que não aceitavam a separação da coroa.

"É um movimento muito interessante porque teve clara participação popular", explica a historiadora Heloisa Starling. "A Bahia se orgulha de ter reunido índios, libertos, brancos, vários setores da sociedade brasileira lutando pelo 2 de julho. E o caboclo é uma representação simbólica da presença do índio nessa luta."

O carnavalesco Leandro Vieira quis resgatar a luta e participação indígena no processo. "Temos cristalizado que independência se deu com grito de Pedro I às margens do rio Ipiranga, mas pouca gente sabe que para se tornar de fato independente a Bahia precisou se envolver numa guerra, e que índios lutaram munidos de armas rudimentares", destaca.

Cariris

O samba da Mangueira diz: "Brasil, o teu nome é Dandara, e a tua cara é de cariri". A referência é aos índios pertencentes à família linguística cariri - diversas etnias que ocupavam uma grande área no Nordeste. O enredo resgata a Confederação dos Cariris, também conhecida como a Guerra dos Bárbaros, um movimento de resistência indígena à dominação portuguesa na virada do século 16 para 17, envolvendo sobretudo nativos do Ceará, mas também do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba.

"Eles foram bravos combatentes contra a presença portuguesa e foram dizimados numa guerra com a chegada dos bandeirantes, estes liderados por Domingos Jorge velho, o mesmo bandeirante que combateu o quilombo dos Palmares", conta o historiador Luiz Antônio Simas.

"O levante dos cariris foi tão grande e tão bem organizado que o Estado brasileiro precisou desviar as tropas que combatiam o quilombo dos Palmares para conter o avanço dos índios", destaca o carnavalesco Leandro Vieira.

Chico da Matilde

Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde, foi um jangadeiro e abolicionista que viveu entre 1839 e 1914 no Ceará. Ganhou a alcunha de Dragão do Mar depois de liderar uma revolta de jangadeiros para impedir que portos cearenses fossem utilizados para embarque e desembarque de escravos. "No porto do Ceará não se embarcam mais escravos", disse em sua frase mais célebre.

Nascido em Canoa Quebrada, em Aracati, o jangadeiro aparece no samba da Mangueira nos versos: "Não veio do céu/ Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati".

O Ceará foi a primeira província a abolir a escravidão no Brasil, em 1884, quatro antes da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. "Além de liderar o movimento que impedia o traslado de escravos, ele abrigou escravos em casa e atuou na difusão de ideias abolicionistas no Ceará", diz Leandro Vieira. "Foi motivado com figuras como esta que o movimento abolicionista no Ceará ganhou tanta força", considera. Chico da Matilde é até hoje símbolo da resistência popular à escravidão no Estado. O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, presta homenagem a ele.

Dandara e Aqualtune

Foram respectivamente a mulher e a mãe de Zumbi dos Palmares. "Na nossa sociedade, o machismo é um dado importante para a compreensão da narrativa estabelecida, e o próprio movimento negro, quando estabeleceu seus líderes, deu preferência para homens", diz o carnavalesco Leandro Vieira sobre a consagração de Zumbi como referência de Palmares.

Esta foi a maior comunidade de escravos fugidos no país, em uma região do atual Estado de Alagoas, ao longo do século 17. Os quilombos chegaram a abrigar aproximadamente 20 mil habitantes, divididos em diversos núcleos.

Um deles recebeu o nome de Aqualtune, que, para Vieira, representa o projeto embrionário de Palmares. Ela será vivida no desfile por Tia Suluca, a baiana mais antiga da Mangueira, com 92 anos. Já Dandara será representada por Alcione. "Dandara era uma liderança das tropas guerreiras do quilombo, tanto que ser capturada preferiu se jogar de um penhasco do que voltar para a condição de escrava", diz Vieira.

"Essas personagens reforçam a ideia de que houve muita luta dos negros conta a escravidão, e que essa luta foi marcantemente ligada às mulheres", diz o historiador Luiz Antônio Simas.

Luiza Mahin

É tida como uma importante liderança de movimentos contra a escravidão na Bahia do início do século 18, e combatente na Revolta dos Malês, insurreição armada de escravos que irrompeu em Salvador em 1835. O sobrenome se refere aos mahis, povo do Benin de que descendia. Não se sabe se nasceu no Brasil ou na Costa da Mina, na África; não se sabe o que é verdade e o que é mito sobre sua figura.

A ex-escrava e guerreira africana teria conseguido comprar sua alforria e vendia quitutes em Salvador. Foi retratada no romance histórico "Um defeito de cor", de Ana Maria Gonçalves, e objeto de pesquisa de historiadores como João José Reis, autor de "Rebelião escrava no Brasil", que estudou o levante malê mas não encontrou referências a ela, e escreve ela pode ser "um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário".

Seria a mãe de Luiz Gama, poeta e abolicionista que deixou uma carta em que descrevia a mãe como uma mulher "de um preto retinto e sem lustro", com "dentes alvíssimos como a neve", "altiva, geniosa, insofrida e vingativa". "Mas há quem diga que na verdade ela é uma construção do Luís Gama", diz a historiadora Heloisa Starling.

O samba da Mangueira afirma que "chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês", e no desfile da escola ela virá personificada pela cantora e compositora Leci Brandão. "Seu papel é importante para mostrar a perspectiva do enredo de que a abolição da escravatura não tem que ser lida como um ato de dádiva da princesa Isabel", diz Luiz Antônio Simas. "Foi resultado de uma série de lutas acumuladas dos próprios escravos, que vem desde Palmares e passa por Luiza Mahin, que é uma figura muito conhecida pelo movimento negro, mas que deveria ser muito mais conhecida pelo país", diz Simas.

Sepé Tiaraju

Foi chefe indígena na região dos Sete Povos das Missões, que hoje é parte do Rio Grande do Sul, e liderou a Guerra Guaranítica, rebelião dos índios guaranis em reação à assinatura do Tratado de Madri pelas coroas de Portugal e Espanha em 1750.

No tratado, a Espanha cedeu a região das Missões a Portugal em troca da Colônia de Sacramento, no Uruguai. A ordem foi que os guaranis evacuassem suas aldeias na margem do rio Uruguai.

Com apoio de padres jesuítas, o cacique organizou a resistência contra as forças ibéricas que foram enviadas para fazer cumprir a ordem, e acabou sendo morto em combate em 1756.

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Sheila Mello arrasa na coreografia com Flávia Viana :
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