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Bolsonaro age como Hugo Chávez e fere liberdade de imprensa quando algo o incomoda, diz relator especial da OEA

'Malandro, malandro, para evitar problema, casa com outro malandro e adota criança no Brasil', disse Bolsonaro sobre Glenn Greenwald; à BBC News Brasil, autoridade da OEA diz que presidente fere tratados internacionais com menção a prisão de Glenn e estimula ódio ao mencionar sexualidade do jornalista

29 jul 2019 - 07h23
(atualizado às 10h25)
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Falas de Bolsonaro sobre sexualidade de Glenn Greenwald (foto) são "discurso realmente perigoso, que desagrada e gera novas expressões de ódio", diz relator
Falas de Bolsonaro sobre sexualidade de Glenn Greenwald (foto) são "discurso realmente perigoso, que desagrada e gera novas expressões de ódio", diz relator
Foto: AGÊNCIA SENADO / BBC News Brasil

"Ele (Glenn Greenwald) é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, malandro, para evitar um problema desse, casa com outro malandro e adota criança no Brasil. Esse é o problema que nós temos. Ele não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não vai pegar lá fora não."

As declarações que o presidente Jair Bolsonaro fez neste sábado, no Rio de Janeiro, ao comentar rumores sobre a expulsão do jornalista americano Glenn Greenwald, chamaram a atenção da principal autoridade da Organização dos Estados Americanos (OEA) ligada a liberdade de expressão.

Para o advogado uruguaio Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, "o presidente do Brasil lamentavelmente parece ter se esquecido da Constituição e de tratados internacionais sobre liberdade de expressão dos quais o Brasil é signatário".

"Vejo com absoluta preocupação", disse Lanza, de Washington (EUA), em entrevista à BBC News Brasil por telefone. "Ele adota uma lógica que lamentavelmente antes seguiam os presidentes como (Hugo) Chávez (Venezuela) e (Rafael) Correa. Bolsonaro foi eleito com um discurso de liberdade de expressão e imprensa, mas o abandona rapidamente quando algo o incomoda. Não vejo diferença em relação ao comportamento de Chávez e Correa na América Latina."

Tanto Chavez quanto Correa eram expoentes da onda de governos de esquerda na América do Sul que chegou a seu apogeu na primeira década dos anos 2000.

Segundo Lanza, ao fazer referências irônicas à orientação sexual do jornalista responsável pela série de reportagens sobre supostos diálogos entre o ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro e procuradores da República, Bolsonaro faz "um ataque discriminatório" e incita "um comportamento de perseguição" ao jornalista e à imprensa.

"O trabalho do presidente é prevenir riscos, e não aumentá-los", diz Lanza. "Este é um discurso realmente perigoso, que desagrada e gera novas expressões de ódio. O direito à liberdade de expressão não permite que se desobedeça a direitos fundamentais para se extremar a polarização, especialmente às custas de um grupo que historicamente é discriminado (os homossexuais)", avalia.

Bolsonaro desobedeceria pelo menos dois tratados internacionais

Segundo o relator da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Bolsonaro desobedece pelo menos dois tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O advogado uruguaio Edison Lanza, principal autoridade da OEA para a liberdade de expressão, diz que Bolsonaro incita ódio e fere tratados internacionais
O advogado uruguaio Edison Lanza, principal autoridade da OEA para a liberdade de expressão, diz que Bolsonaro incita ódio e fere tratados internacionais
Foto: UNIC Rio/Gustavo Barreto / BBC News Brasil

O artigo 19 do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU, que entro em vigor em 23 de Março de 1976, diz que "toda a pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de toda a índole sem consideração de fronteiras, seja oralmente, por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo que escolher".

Como ressalva, o artigo aponta que, para tal, é preciso "assegurar o respeito pelos direitos e a reputação de outrem e a proteção da segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral públicas".

A reportagem lembra que boa parte dos apoiadores do presidente tem classificado a atuação de Greenwald justamente como ameaça a segurança nacional, uma vez que os dados divulgados na reportagem teriam sido obtidos de forma ilegal pela fonte anônima do site jornalístico The Intercept Brasil.

O relator lembra que a proteção de fontes jornalísticas é um princípio que faz parte do direito à liberdade de expressão, já que sem essa proteção, informações de interesse público envolvendo poderosos "dificilmente se tornariam públicas".

O tema também é regulado pelo Princípio 8 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH, que estabelece que "todos os comunicadores sociais têm o direito de reservar suas fontes de informação, anotações e arquivos pessoais e profissionais".

"Há uma ignorância aí sobre como funciona justamente a liberdade de expressão. Isso não é novo. Imagine se os papéis do Pentágono da década de 1970 sobre a guerra de Vietnam não tivessem se tornado conhecidos, se os jornalistas que os divulgaram não tivessem recebido a proteção da suprema corte dos EUA. Isso é protegido por leis e acordos internacionais. Um jornalista publicar algo obtido ilegalmente, mas que tenha interesse público, como este é o caso, não pode ser criminalizado e não ameaça a segurança nacional", avalia o relator.

Ele se refere aos "Pentagon Papers", um extenso documento secreto páginas do departamento de Defesa americano que mostrava que os EUA não cumpriram acordos na Guerra do Vietnã e expandiram seus ataques, enquanto informavam à opinião pública justamente o contrário. Os papéis haviam sido furtados por um ex-funcionário do Pentágono e o então presidente Richard Nixon tentou impor censura prévia aos jornais New York Times e Washington Post, que receberam os documentos. Por 6 votos a 3, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em 1971, que a restrição era inconstitucional. "Somente uma imprensa livre e sem restrições pode efetivamente expor enganos no governo", disse então o juíz da suprema corte Hugo Black.

Lanza continua: "No caso Wikileaks, dezenas de jornais em todo o mundo publicaram informações conseguidas por informantes. O público tinha direito de saber. Deve se proteger o direito de que, se a fonte obteve ilegalmente, isso não se estende ao jornalista. Isso está estabelecido há mais de 50 anos", diz.

"Me parece que a imprensa deve pedir esclarecimentos sobre os conteúdos divulgados, e não apenas sobre quem trouxe as mensagens", continua. "Ao que parece, houve abuso de poder pelo juiz Moro, que ultrapassou suas funções. Esse é o ponto-chave, já que ninguém desmentiu as mensagens."

"Bolsonaro sempre usa esse tipo de discurso"

Já o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos aponta que "não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa", nem por "quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões".

Bolsonaro diz que jornalista que revela supostos dialogos impróprios de Moro "talvez pegue uma cana aqui no Brasil"
Bolsonaro diz que jornalista que revela supostos dialogos impróprios de Moro "talvez pegue uma cana aqui no Brasil"
Foto: REUTERS/ADRIANO MACHADO / BBC News Brasil

O texto diz ainda que a lei deve proibir "toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência".

A referência ao casamento de Greenwald com o deputado David Miranda (PSOL-RJ) e aos filhos adotados pelo casal feriria o último ponto.

Segundo o relator especial, os últimos comentários de Bolsonaro não representam "uma coisa isolada".

"O presidente Bolsonaro sempre usa esse tipo de discurso", diz a autoridade à BBC News Brasil.

"Há uma série de declarações estigmatizantes e totalmente contrárias à ordem jornalística vindo dele, de deputados do partido do governo, do filho do presidente. E obviamente há ameaças de morte contra o jornalista vindo de supostos fanáticos. A situação de risco e vulnerabilidade contra o jornalista é muito grande e, ao mesmo tempo, o presidente o chama de malandro, algo que soa como 'bandido'. Também há, como dito, uma forma de discurso discriminatório, que obviamente o expõe ainda mais."

Lanza lembra que suas posições não representam apenas a comissão da OEA, mas são compartilhadas pela ONU.

"Ao que parece, houve abuso de poder pelo juiz Moro (foto), que ultrapassou suas funções. Esse é o ponto-chave, já que ninguém desmentiu as mensagens", diz relator
"Ao que parece, houve abuso de poder pelo juiz Moro (foto), que ultrapassou suas funções. Esse é o ponto-chave, já que ninguém desmentiu as mensagens", diz relator
Foto: MAURO PIMENTEL/AFP / BBC News Brasil

Em 1o de julho, Lanza e o Relator Especial das Nações Unidas para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, David Kaye, lançaram comunicado conjunto expressando "preocupação com as ameaças, desqualificações por parte das autoridades e as intimidações recebidas pelo jornalista Glenn Greenwald da agência de notícias The Intercept Brazil, bem como com seus parentes, após a divulgação de informações e denúncias de interesse público."

No texto, os dois relatores pedem que o Brasil "conduza uma investigação completa, efetiva e imparcial das ameaças recebidas pelo jornalista e sua família".

"Também lembra as autoridades brasileiras de suas obrigações de prevenir e proteger os jornalistas em risco e garantir a confidencialidade das fontes de informação" e que "os jornalistas que investigam casos de corrupção ou ações impróprias por autoridades públicas não devem estar sujeitos a assédio judicial ou outro tipo de assédio em retaliação por seu trabalho".

"O jornalismo deve ser exercido livre de ameaças, abuso físico ou psicológico ou outro assédio", diz o texto.

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