"Bolsonaro é a exibição sem censura da incivilização brasileira"
Para cientista político, Brasil vive processo cumulativo de "direitização", com Bolsonaro como expressão do moralismo conservador. Bandeiras do combate à corrupção e antipetismo vieram para ficar, diz.Diferenciar o fenômeno político do fenômeno eleitoral Jair Bolsonaro é essencial para compreender a ascensão da direita no Brasil. É o que afirma Adriano Codato, doutor em Ciência Política pela Universidade de Campinas (Unicamp) e um dos coordenadores do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Para Codato, há um processo cumulativo de "direitização" no país, vigente desde o início da década passada. "Bolsonaro foi em 2018 a expressão do moralismo conservador das camadas médias, da anticorrupção, esse valor muito caro à sociedade nacional que a esquerda não soube cultivar quando no governo", diz. "Como fenômeno político, Bolsonaro é a encarnação acabada do racismo, do machismo, da misoginia, da violência prática e simbólica."
Em entrevista à DW Brasil, Codato fala ainda sobre as perspectivas para as eleições municipais de novembro, o impacto do auxílio emergencial e de políticas sociais nos próximos processos eleitorais e os diferentes perfis da direita brasileira contemporânea. "Ela [a direita] conseguiu ter mais presença, soube usar melhor e antes as novas plataformas digitais de comunicação do que a esquerda", afirma.
DW Brasil: O senhor afirma no artigo Tipologia dos políticos de direita no Brasil: uma classificação empírica que a direita brasileira vem crescendo no país desde o início da década de 2010. Qual foi o "ponto de virada" para esse crescimento?
Adriano Codato: Posicionar partidos políticos no Brasil no espectro tradicional esquerda-centro-direita é sempre problemático. Há muitos partidos que controlam cadeiras no Congresso Nacional [Câmara dos Deputados e Senado], mais de 20, e poucos são, de fato, puramente programáticos. Assim, o alinhamento principal do espectro partidário no Brasil se dá mais no eixo que separa governo e oposição do que direita e esquerda, como na Europa.
De toda forma, há sim partidos com um discurso e com uma atuação parlamentar conservadora. Esses partidos conquistaram a maioria das cadeiras nas eleições de 2014, invertendo uma tendência de queda desde 2002.
Além disso, o Brasil é um país presidencialista. As eleições parlamentares são separadas das eleições para presidente da República. Em 2014, a eleição presidencial foi vencida por Dilma Rousseff, de um partido de centro-esquerda, o PT. Em 2018, a eleição foi vencida por um político de extrema direita, Jair Bolsonaro, um político indiferente a partidos e que já passou por vários deles, mas sempre à direita.
Entre 2014 e 2018 houve o impedimento de Rousseff (PT), em 2016, a partir de um movimento liderado por um bloco de forças políticas, sociais e judiciais reacionárias. Em resumo: não há um ponto de virada concentrado em uma única conjuntura crítica, mas um processo cumulativo e progressivo de "direitização".
A direita brasileira é um fenômeno complexo, que foge à ideia de direita única e tradicional. Quais são os perfis da direita brasileira hoje?
A grosso modo, identificamos cinco tipos: o político tradicional de direita (ligado aos grandes partidos cuja origem genealógica pode ser buscada na ditadura militar); o político da nova direita popular (ligado à ampla base social das igrejas evangélicas); o político da direita populista (no caso, o tipo ideal seria Bolsonaro; o político da direita neoliberal (cujo programa reformista vai do PSDB até o Novo) e o político da direita libertária.
Ainda dentro dessa questão, algo que se consolidou nos últimos anos foi o aumento da bancada evangélica. Ela conseguiu, de fato, ocupar o espaço que por muito tempo foi da esquerda nas comunidades e periferias?
Pesquisas qualitativas têm apontado nessa direção, e a própria geografia do voto tem mostrado isso, sim.
As Jornadas de Junho, de 2013, exerceram um papel importante no fenômeno de consolidação dessas diferentes "direitas"?
Os movimentos de junho de 2013 marcaram a aglutinação de forças políticas e também sociais oposicionistas aos governos do Partido dos Trabalhadores, na Presidência desde 2003. Nesse momento, emergiram com força duas agendas, uma negativa, contra a corrupção, e uma positiva, a favor da melhoria dos serviços públicos. Reconstruindo a cronologia dos acontecimentos, pode parecer que 2018 [quando ocorre a eleição de um político de extrema direita] já estivesse contido em 2013 [nos movimentos de protestos contra o governo encampados pela direita anti-PT], mas essa não é uma linha reta.
Quais são as perspectivas para a direita brasileira nas eleições municipais deste ano e para o pleito de 2022?
A política brasileira, nos últimos dez anos, é tão repleta de acontecimentos, voltas e reviravoltas que se torna difícil fazer previsões. Um agente que tem contribuído muito para essa imprevisibilidade é o poder Judiciário, que atua também como ator político, muda constantemente as regras eleitorais, torna competidores inelegíveis, altera interpretações da legislação, etc. Nesse contexto, há tanto chance de a esquerda não petista disputar a prefeitura de grandes cidades, como em Porto Alegre ou em São Paulo, como de Bolsonaro empregar seu capital político, prestígio e popularidade recentes para aumentar a presença da direita no interior do Brasil.
Em 2018, o partido Novo, que à época tinha sido registrado há somente três anos, conseguiu eleger o governador de um dos maiores estados do país [Romeu Zema, de Minas Gerais] e teve um candidato à Presidência com desempenho melhor que nomes já conhecidos, como Henrique Meirelles (MDB) e Marina Silva (Rede). Essa direita com forte perfil de liberalismo econômico e nomes ligados ao empresariado, e não tradicionalmente à política, deve crescer no Brasil?
A maior barreira para o crescimento dessa família de direita é o seu programa econômico e o seu discurso político. No Brasil, um programa de ajuste fiscal rigoroso e um discurso pró-mercado possui quase nenhuma viabilidade eleitoral. O partido Novo apoiou-se mais no fato de ser novidade do que no fato do que ele é de fato: o mais acabado exemplo de reciclagem do discurso conservador e demófobo da direita liberal brasileira.
Um levantamento da Folha de S. Paulo divulgado em julho apontou que o total de contas de usuários mais à direita suspensas pelo Twitter entre maio de 2019 e junho de 2020 é quatro vezes maior do que as contas consideradas mais à esquerda. O que esse número acaba entregando?
Que a direita brasileira conseguiu ter mais presença, soube usar melhor e antes as novas plataformas digitais de comunicação do que a esquerda.
Jair Bolsonaro foi de um parlamentar mediano, desconhecido de grande parte da população por muito tempo, a presidente do Brasil. O que explica esse fenômeno?
Penso que seja preciso diferenciar Bolsonaro como fenômeno político, de um lado, e como fenômeno eleitoral, de outro. Como fenômeno político, Bolsonaro é a encarnação acabada do racismo, do machismo, da misoginia, da violência prática e simbólica, das taras e dos preconceitos de uma sociedade profundamente autoritária como a brasileira. Um ator político rude, inculto e grosseiro é a exibição sem censura da nossa incivilização.
Como fenômeno eleitoral, por sua vez, Bolsonaro foi em 2018 a expressão do moralismo conservador das camadas médias, da anticorrupção, esse valor muito caro à sociedade nacional que a esquerda não soube cultivar quando no governo, e o veículo útil das forças de mercado que encontraram, em 2018, em um acabado reacionário a oportunidade para continuar e aprofundar um projeto reformista do capitalismo nacional.
Nos últimos anos, muito se apontou no Brasil uma melhora em relação à renda, por conta do aumento do salário mínimo e de programas como o Bolsa Família, além de uma maior facilidade em relação ao acesso a crédito, políticas direcionadas ao ingresso nas universidades, e que tais políticas sociais favoreceram a manutenção do PT na Presidência. O auxílio emergencial, porém, multiplicou o alcance do Bolsa Família. Qual será o impacto dessas políticas sociais nas próximas duas eleições?
Nas eleições municipais de novembro de 2020, o impacto tende a ser positivo à medida que candidatos e candidatas consigam se associar a essa agenda. Mas isso deve variar bastante, pois há mais de 30 partidos eleitorais no Brasil, e as disputas se darão em mais de 5.500 cidades. Nas eleições de outubro de 2022 esse impacto será seguramente modulado pela continuidade ou não desse tipo de programa de transferência de renda.
As principais bandeiras de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 foram o "combate à corrupção" e o "antipetismo". Elas ainda se sustentam em um cenário em que o PT já estará há seis anos longe do poder em 2022 e Bolsonaro rompeu com Moro?
Exceto se eu estiver completamente errado, o combate à corrupção e o antipetismo, como já foi o anticomunismo, são bandeiras que vieram para ficar no coração das camadas médias brasileiras, dos formadores de opinião e dos publicistas em geral. Mesmo que não seja muito crível Bolsonaro se apresentar como anticorruptível e como um herói anticomunista, para uma parte da sociedade brasileira esses são dois valores eternos. Por outro lado, o voto econômico, ou seja, o voto baseado na percepção sobre as condições reais de vida da maior parte do eleitorado, deverá ter mais importância do que o voto ideológico.
Hoje, quais as chances reais de reeleição de Bolsonaro?
Com dois anos de antecedência, é imprudente fazer alguma previsão. Suas chances dependem da manutenção da sua popularidade, sustentada por programas de transferência de renda, do seu apoio junto à turma do dinheiro e do prestígio da retórica reacionária. Isso, de um lado. De outro, da capacidade, ou da incapacidade, das esquerdas (lulista, trabalhista, verde) se coordenarem em uma frente ampla, ou única, ou o que seja, contra a hegemonia pretendida da direita.