Limongi: "Bolsonaro pratica a velhíssima política"
Em entrevista, cientista político aponta despreparo do Executivo e desconhecimento do que é o papel de um presidente
A troca de farpas quase diária entre os presidentes da República, Jair Bolsonaro, e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, dominou o noticiário ao longo das últimas duas semanas. Os desentendimentos já repercutem na economia, com investidores apreensivos em relação à possibilidade de aprovar a reforma da Previdência. A sustentação do governo no longo prazo também passou a ser alvo de questionamentos.
Em entrevista à DW Brasil, o cientista político Fernando Limongi, doutor pela Universidade de Chicago e professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP-FGV), não poupa críticas à incapacidade do presidente e seus ministros em estabelecer um diálogo efetivo com o Legislativo.
"O problema é que Bolsonaro não sabe como, porque nunca participou de um processo deliberativo. Ele era um deputado medíocre, do baixíssimo clero, que não tinha o menor interesse pela produção de políticas públicas. Tudo o que ele fazia era movimentar as redes sociais. Como vai governar assim?", indaga.
Limongi critica a maneira como o presidente tenta aprovar a reforma da Previdência -- o governo fica com o bônus político e o Congresso, com o ônus. "O que ele quer fazer é a mais velha política possível".
DW: O presidente Jair Bolsonaro e seu grupo político costumam abordar a articulação com o Congresso de forma negativa, associando à corrupção. Como o senhor vê essa postura?
Fernando Limongi: Vejo como um completo equívoco, uma bobagem. Pode ser que, no passado, essas relações tenham sido da forma que o Bolsonaro está dizendo, mas não necessariamente são assim. Cabe ao Executivo dizer em que termos quer negociar. Ninguém elege um ditador. O governo manda um projeto para o Congresso e diz que eles têm que votar por patriotismo, ou porque é "o certo". Mas quem vai ganhar se a reforma da Previdência passar e trouxer à sociedade todos os benefícios que o Guedes acredita que virão? Todo o lucro político vai para o Bolsonaro. O que ganham os deputados? Zero. O que ele quer fazer é a mais velha política possível, não querendo dividir com ninguém. Se não haverá reciprocidade mínima, por que os parlamentares vão assumir o custo de ajudá-lo?
O desgaste provocado pela Lava Jato não deixa o Executivo de mãos atadas, uma vez que a própria população vê as negociações dessa forma?
É o contrário. Nunca o Executivo esteve em melhores condições para ditar os termos da negociação com o Congresso. Se ele acha que deve ser na base da nova política, não tem que dizer que "a bola está com o Congresso", e sim estabelecer qual jogo vai ser jogado a partir de hoje. O problema é que o Bolsonaro não sabe como, porque nunca participou de um processo deliberativo. Ele era um deputado medíocre, do baixíssimo clero, que não tinha o menor interesse pela produção de políticas públicas. Tudo o que ele fazia era movimentar as redes sociais. Como vai governar assim? Não precisa ser com corrupção.
É claro que ela estava presente em governos anteriores, mas, se corrupção fosse resultado da dificuldade de montar coalizão, por que o PSDB manteve esquemas no Paraná e em Minas Gerais? Até onde se sabe, nenhum outro partido praticou desvios da Dersa em São Paulo além do PSDB. Eles não estavam em busca de governabilidade. O PT era o partido do governo, também não precisaria ter se corrompido. Não tem nada a ver. O que estava alimentando a corrupção era dinheiro para campanha. O TSE não estava fiscalizando, e eles foram fazendo acordo com as empreiteiras, com quem prestava serviço aos governos. Fazer a máquina pública funcionar é complicado. Mas o governo fiscaliza e impede, se quiser. Agora, se você põe gente que não entende nada do riscado e só pensa em ideologia, que não entendem nada de política pública, caso do MEC, vira uma bagunça.
Qual é a importância do processo de negociações entre Executivo e Legislativo para o funcionamento institucional da democracia?
Em qualquer lugar do mundo, inclusive no modelo parlamentarista, o sistema democrático sempre tem diversas fases. É preciso passar pelo crivo do público. O trâmite de qualquer proposta do Executivo no Congresso serve para expor essa ideia à crítica e abrir a possibilidade de incorporar informações e correções. Na visão do senso comum, há uma presunção de que qualquer transformação sugerida pelo Legislativo tem vistas a piorar o projeto visando aos seus próprios interesses ou à corrupção. Não é necessário que assim seja, e não é assim na maior parte das vezes. O Executivo não sabe de tudo, e o Congresso, incluindo seus partidários, opera de modo a informar o presidente sobre o que está acontecendo, quem está sendo afetado ou ganhando, e corrigir a proposta. Se o Executivo entende que não deve fazer concessões, não faça, mas é humanamente impossível que o governo seja onisciente, saiba tudo e seja capaz de fazer propostas perfeitas, que não precisem passar pelo crivo do público. O Congresso é o espaço onde todas essas questões são discutidas, quando argumentos a favor e contrários vão entrar em jogo.
Obviamente, se a parte mais interessada no projeto não organizar o Legislativo, que é composto por 513 pessoas de tantos partidos, isso não acontecerá espontaneamente. No caso da reforma da Previdência, o interesse é do Executivo. Essa história de passar a bola, como o presidente falou, revela uma completa incapacidade de pensar o sistema político como ele funciona. Este é o nosso grande problema atualmente, e não a questão da corrupção. Quem está à frente do Executivo não tem a menor compreensão do processo político, do mais básico sobre o que seja fazer políticas públicas. É gente inexperiente. E não falo só do Bolsonaro, mas também o [Paulo] Guedes [ministro da Economia], o [Sérgio] Moro [Ministro da Justiça], que querem impor a sua vontade. Eles acham que mandam o projeto definem que é preciso aprovar o que foi enviado. Não é assim que funciona na França, nos EUA, e nem era assim na ditadura militar aqui. É muito primária essa discussão. Este é um governo de pessoas despreparadas, incapazes de gerir o Estado. A marca maior é o Ministério da Educação, que está uma bagunça. A situação é bastante complicada, porque ninguém consegue ver qualquer perspectiva positiva diante dessa fragilidade das lideranças que estão à frente do Executivo.
Outros presidentes que adotaram uma postura de enfrentamento ao Congresso acabaram caindo, como Jânio, Collor e Dilma. Pelo que o senhor descreve, é factível falar em risco de impeachment a esta altura?
Não tem essa proposta na mesa e essa alternativa não é considerada. Tem mitos sobre os motivos que levaram às quedas de Collor e Dilma. Não é tão simples assim. Para que o Congresso ou qualquer maioria venha a considerar o impeachment, precisa ter o governo alternativo para pôr no lugar. Isso significa que é preciso formar uma coalizão capaz de trocar a que está no poder hoje. Nada está se formando no momento, não há polos de atração capazes de fazer isso. O desastre eleitoral que foi 2018 para o PT e PSDB retirou essa possibilidade. Sob esse ponto de vista, o cenário é mais delicado que nos períodos anteriores às quedas de Collor e Dilma. Você está diante de uma terra arrasada produzida pela eleição do ano passado, que não deixa alternativa viável a esse governo.
O ponto é que o presidente precisa entender como funciona o governo para poder governar. Ele está eleito e tem que dar conta do recado, mostrar que é capaz de aprender, mas está indicando o contrário, assim como Guedes, Moro e Vélez, entre outros. Nas pastas em que os políticos são um pouquinho mais experientes, como Agricultura e Saúde, cujos ministros não mexeram tão fortemente na estrutura, não há todo esse problema.
Como o senhor vê a troca de farpas entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia?
É um despreparo do presidente para se comportar como homem público, e isso também vale para o Rodrigo Maia. Essas briguinhas são coisa de criança. Quem é político tem que ter casca dura, ser como um crocodilo, que não se afeta por essas provocações. Se o Bolsonaro quer fazer essa bobagem toda, o papel do Maia é desconsiderar. Ou, pelo menos, reagir de forma civilizada e pelos meios realmente efetivos. É certo que a campanha desfechada pelo Bolsonaro e sua turma contra o Maia nas semanas anteriores, via redes sociais, é inaceitável. Ele tinha que reagir, mas para mostrar que é superior, e não descer ao mesmo nível. Agora, o fato é que o Maia não é nenhum grande estadista. Teve uma ascensão meteórica por causa desse vazio produzido pela Lava Jato como pelas eleições.
Ele está usando a situação para valorizar seu capital político?
Se ele quer fazer isso, tem que se comportar como um ator político relevante, mais maduro. A reação dele na última quarta-feira não foi nesse sentido. Antes, ele estava chamando para si a responsabilidade. Foi ele que convocou um almoço com os presidentes do STF e do Senado. Não deveria ser ele a fazer isso, mas o presidente. No fim das contas, quem desarmou a reunião foi o Bolsonaro. Para uma pessoa minimamente consciente do seu papel e de como funciona o sistema, é desesperador estar diante de um cara tão imprevisível e irresponsável. Com essa postura de associar negociação à velha política, o governo ficou sem saída. Se negociar com o Congresso, vai expressar que capitulou. E o Congresso, de fato, o colocou contra a parede com a edição dessa PEC, outro fato inusitado, que mostra o grau de desespero dos parlamentares, na expectativa de que o Executivo tome alguma iniciativa. Só o que eles conseguem fazer é essa molecagem, que não tem consequência alguma, pois tem que passar pelo Senado.
A "nova política" é conciliável com a governabilidade?
O Bolsonaro não foi eleito com o discurso de nova política, isso é uma invenção. Ele adotou esse discurso depois de ser eleito. Antes da eleição, quando cresceu como figura pública, nunca tocou nisso. Ele sempre falou em combater o PT e implementar uma agenda ideológica antiprogressista, já que para ele o FHC é tão de esquerda quanto o Lula, mas nunca adotou esse tom. Pelo contrário: foi pego na mais velhíssima política possível, mantendo servidor fantasma, fora o que se revelou sobre o Flávio Bolsonaro e a apropriação pelo PSL do fundo eleitoral. Se há uma coisa que o Bolsonaro pratica é a velhíssima política. De uma forma absolutamente oportunista, ele abraçou essa ideia, o que é mais uma prova de sua total incapacidade.
Acho importante ressaltar que toda essa bagunça com relação ao Congresso e a Previdência, assim como a comemoração do golpe militar, tirou dos holofotes a pauta da Marielle e do possível envolvimento do filho dele com as milícias. Não posso garantir que é premeditado, mas é fato que o olhar da opinião pública foi desviado. Ele está brigando com o Maia, mas usa a estratégia do seu pai, César Maia, que criou o termo "factoide". O Bolsonaro cria um por dia. São problemas que, depois, ele não consegue resolver.
O ministro Moro não está falando para ninguém, mas vem tendo que engolir um sapo atrás do outro. Ele está quieto sobre a questão do tráfico de armas, porque, afinal, foram encontrados 117 fuzis desmontados que, segundo a polícia, pertencem ao suspeito da morte da Marielle que mora no condomínio em que reside o presidente da República. Obviamente, isso não quer dizer que o Bolsonaro tenha relação com isso, mas está no núcleo do poder, convivendo com uma corrupção que é infinitamente mais preocupante e problemática do que a dos políticos. O Moro só fala nesse tipo de desvio. E o contrabando? Ele está tendo que fingir que desconhece isso, e fica com essa insistência no projeto anticrime.
Enviar esse projeto tão delicado ao Congresso junto com a reforma da Previdência foi uma provocação do governo?
Não. O governo foi desgovernado, como tem sido. É uma iniciativa do Moro que nunca foi encampada pelo presidente ou seus auxiliares, tampouco foi acompanhada por qualquer tentativa de organização de uma base de apoio a essa proposta por parte do governo. Os relatos a que temos acesso dão conta de que o Moro pressiona o Maia para votar o projeto imediatamente. Um projeto dessa envergadura, com essas consequências, não se vota do dia para a noite. Tem que ser discutido. Como eu disse, o Congresso tem que fazer o papel dele. Na verdade, o projeto já foi enviado antes e rejeitado. É o mesmo que foi relatado pelo Onyx Lorenzoni quando deputado, época em que houve a aproximação entre o grupo do Bolsonaro e a Lava Jato, que é oportunista. Mandar o texto de novo, sem qualquer adição ou discussão, é infantil.
Além disso, é de um cinismo absurdo. Tudo o que ele faz é aumentar penas e chances de prender pessoas, como se, dessa forma, você acabasse com a corrupção. O diagnóstico dele é que as pessoas se corrompem porque acham que não serão presas. Não é assim. Isso acontece porque tem um mercado de venda de serviços públicos, nas concorrências, muito organizado. Tanto é assim que o Temer continuou a fazer com o Lula já preso. Está mais que comprovado que não é por esse caminho que se combate a corrupção. Além disso, é o tipo de ação que vem depois do leite derramado, prendendo quem praticou atos ilícitos. O sistema continua a funcionar.