Brumadinho: 'gritos, crianças chorando e fogo', voluntário descreve horror em resgate que 'não passa na televisão'
Assim como Silvânia, outras centenas de voluntários foram a Brumadinho para ajudar nos resgates e no apoio aos familiares de vítimas.
A professora de ensino fundamental Silvânia Fonseca Moraes voltava do velório de um parente quando leu as primeiras notícias sobre o rompimento de barragens da mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), na sexta.
Moradora do bairro Casa Branca, localizado a cerca de 16 quilômetros de distância do local da tragédia, ela pegou seu jipe no dia seguinte e seguiu para uma região próxima à mina. Brigadista voluntária, já havia auxiliado em combates a incêndios florestais, mas nunca tinha trabalhado em resgates. Foi então que, conta, vivenciou uma das situações mais traumatizantes da sua vida.
"Nunca assisti a filmes de terror, porque nunca me interessei. Mas, infelizmente, o que vivi ali foram cenas de terror ao vivo", narra a professora, que, ao chegar à área da tragédia, foi chamada para auxiliar uma das equipes do Corpo de Bombeiros nas buscas por vítimas da tragédia.
Durante esse período, vários corpos foram encontrados pelo caminho.
Assim como Silvânia, outras centenas de voluntários foram a Brumadinho para ajudar nos resgates e no apoio aos familiares de vítimas - a reportagem da BBC News Brasil conversou com alguns deles.
Silvânia acompanhava outros voluntários que ajudavam na região atingida pelos rejeitos desde o dia anterior. "Vi que tinha muita necessidade de ajuda, porque o número de vítimas era assustador. Como tenho um jipe, fui para ajudar a levar comidas aos socorristas e auxiliar desabrigados", explica.
Mas quando chegou ao local, os bombeiros pediram que ela utilizasse a experiência como brigadista voluntária para auxiliá-los nos caminhos de mata da região. "Naquelas áreas, que são fechadas, helicópteros e drones não poderiam ajudar, então eles precisariam ir a pé."
A professora conta que fez um pedido aos bombeiros: não queria ver corpos. "O que gosto é de salvar vidas. Não tenho estrutura para ver corpos", diz.
"Nunca vi tanto horror na minha vida. A lama não deixou vestígios. Ela passou varrendo tudo.".
Até o momento, 58 mortes foram confirmadas. Há 305 pessoas desaparecidas.
Orientações a ribeirinhos
O socorrista Diego Dias também se sensibilizou com a tragédia de Brumadinho e foi ao local para prestar ajuda. Ele mora em Queluz (SP) e chegou à cidade mineira por volta das 2h30 de sábado. Por ter experiência com primeiros socorros, transitou pela região atingida pelos rejeitos junto com uma equipe da Cruz Vermelha.
"Fomos procurar por vítimas e também visitamos as casas localizadas nas proximidades, porque havia o risco de estourar outra barragem", comenta.
Pelas margens da lama, procuravam vítimas. Quando avistavam um corpo, informavam a uma equipe do Corpo de Bombeiros, que ia de helicóptero ao local. "Ninguém conseguia andar no barro, então somente o helicóptero poderia retirar os corpos", relata. A equipe da qual fez parte não encontrou nenhum sobrevivente.
Diego e outros ocupantes do veículo da Cruz Vermelha passaram pelas casas de pessoas que vivem à beira do rio Paraopeba.
"Explicamos que era uma área de risco e orientamos que eles deveriam ir para um lugar mais seguro, como escolas e faculdades, que a defesa civil da região disponibilizou. Muitas daquelas pessoas eram idosas, sem recursos e sequer sabiam o que estava acontecendo. A única coisa que eles nos disseram era que haviam estranhado que na noite anterior sentiram a terra tremer."
"Algumas pessoas não quiseram sair de casa, mesmo com nosso alerta. Nesses casos, tivemos que informar a situação para a Polícia Militar, porque era um risco a permanência delas ali", acrescenta.
Ele conta que uma das situações mais complicadas era quando familiares cobravam respostas sobre desaparecidos. "Eu fiquei muito chocado ao ver famílias gritando desesperadas e pedindo respostas. Nós, voluntários, não tínhamos essas respostas", lamenta.
"A televisão mostra imagens que faz parecer com que o trabalho do resgate é bonito. Mas, no local, presenciando pessoas gritando, crianças chorando, postes pegando fogo e barro descendo. É uma coisa muito forte. Foi chocante. Não tenho como explicar", declara.
Na tarde de sábado, ele conta que a equipe suspendeu os trabalhos na região, em razão de uma forte chuva que atingiu o local. Na manhã de, os trabalhos foram suspensos por um período, em razão da possibilidade de rompimento de mais uma barragem. A hipótese, porém, foi descartada horas mais tarde.
Rio poluído
O fotógrafo Marcos Dâmaso foi ao local com um amigo, que tem dois cães farejadores. Moradores de Betim (MG), eles chegaram a Brumadinho na manhã de sábado.
"Desde que fiquei sabendo da tragédia, tive vontade de ir ajudar. Nosso principal objetivo era salvar vidas", relata à BBC News Brasil.
Ele conta que se cadastrou, com o amigo, em uma área destinada a voluntários e logo começou as buscas. "Um bombeiro nos acompanhou durante todo o trajeto", diz.
O grupo do fotógrafo, que também é biólogo, caminhou por cerca de 12 quilômetros. "Fomos por uma trilha na região de uma linha de trem", comenta ele, que se diz desolado com a destruição que viu.
"No rio Paraopeba, uma parte da água estava clara, enquanto a parte atingida pelos rejeitos estava muito escura e avermelhada. Foi um contraste muito grande. Provavelmente, por se tratar de rejeito de minério, está contaminado com materiais pesados, como chumbo e mercúrio. Há chances de contaminar os rios da região", avalia.
Dâmaso e os companheiros de trajeto, incluindo os cães farejadores, não encontraram nenhuma vítima durante o caminho.
"Vi um Fiat Uno tombado, pedaços de casas, uma cama e várias outras coisas sendo levadas pelo rio. Foi a primeira vez que vi uma tragédia desse nível."
Eles ficaram por cerca de quatro horas na trilha. Avistaram uma região de lama e tentaram entrar para procurar vítimas, mas logo desistiram. "O meu amigo colocou o pé ali e começou a afundar, então logo saímos."
"É uma experiência nada fácil. Não é fácil saber que tem centenas de corpos naquela lama."
O voluntário torce para que os responsáveis pelo crime ambiental sejam punidos.
"Espero que as pessoas que tenham a ver com isso sejam presas. É o que deve ser feito para resolver. Não adianta aplicar multa apenas. Não podemos deixar essas pessoas sem punição."
Voluntário em Mariana e em Brumadinho
O bombeiro Denis Valério estava em Pedro Leopoldo (MG), onde mora, quando soube da tragédia em Brumadinho. Três anos atrás, ele havia atuado como voluntário nos resgastes após o rompimento da barragem na vizinha Mariana (MG).
Era cerca de 21h de sexta-feira quando ele chegou à região atingida pelas barragens, onde ajudou a retirar a população ribeirinha das áreas de riscos.
"Eu disse a eles sobre os perigos de permanecer ali, principalmente porque muitos rejeitos se acumularam no rio e apresentavam riscos para eles, caso o nível da água subisse", conta.
Também auxiliou na busca por vítimas. "Infelizmente, a minha equipe não conseguiu localizar ninguém."
O programador Felipe Butcher, que mora no bairro Casa Branca, seguiu para a região da mina Córrego do Feijão ainda no início da tarde de sexta-feira, logo que viu mensagens sobre a tragédia em grupos de WhatsApp.
"Alguém que estava na Vale mandou um áudio gritando e contando sobre o ocorrido. A dúvida de ir ou não foi grande. Muitas pessoas dos grupos falaram para não ir, mas outros disseram que iriam. Coloquei os equipamentos de proteção no carro e fui", diz.
Ele também é brigadista voluntário em incêndios florestais e afirma que não havia atuado em resgates. "Nunca pensei que um dia viveria uma experiência como a que tive no Córrego do Feijão."
Em poucos minutos, ele chegou ao local. "A minha casa é próxima ao 'Feijão'. Logo que cheguei, ainda havia poucos bombeiros. A base da operação estava sendo montada. Estavam chegando ambulâncias e helicópteros. Em pouco tempo, havia mil bombeiros, equipes de polícia e o mais triste de todos: o caminhão preto do Instituto Médico Legal (IML)", declara.
Felipe narra que viu, na região da tragédia, várias pessoas chorando, gritando e tentando ligar para entes queridos que estavam desaparecidos. "Cada família que aparecia estava procurando alguém", comenta.
Diversos brigadistas florestais voluntários de Casa Branca se apresentaram às equipes de Corpo de Bombeiro que estavam no local. "Alguns bombeiros já nos conheciam e aceitaram a nossa ajuda. Conhecemos bem a região e eles sabiam que conseguiríamos entrar bem no mato dali", detalha.
Ele e alguns voluntários desceram até as regiões atingidas pelos rejeitos. "Andamos pouco, porque nos mandaram voltar. Com medo, voltamos", diz. Quando retornaram para o lugar onde estavam as equipes de resgate, ele comenta que viu helicópteros puxando corpos, já envoltos em plásticos pretos.
"Era uma cena surreal. Coisa de filme. Famílias estavam atrás da cerca chorando e, de longe, tentavam ver se era um deles. Hora chegava corpo, hora chegava alguém vivo. Os corpos eram colocados no caminhão do IML e levados o mais rápido possível. O caminhão ia cheio e voltava vazio, como se fosse carga", detalha.
Horas depois de chegar ao Córrego do Feijão, ele e outros voluntários foram autorizados a descer até a região atingida, junto com a equipe de salvamento, que incluía bombeiros e brigadistas.
"Pegamos caronas com jipeiros. Todas as tribos estavam ali tentando ajudar como podiam. Vimos uma ponte gigante de concreto derrubada. Descemos do jipe. Andamos e andamos muito, seguindo a linha do trem que beirava o rio Paraopeba", conta.
Eles não encontraram nenhuma vítima da tragédia. "Isso foi muito triste, porque tudo o que eu queria era salvar alguém. Mas não tive essa oportunidade", diz à BBC News Brasil.
No domingo, a equipe que ele acompanhava foi até uma pousada da região atingida pelos rejeitos. Felipe não quis ir. "Não tive estômago", conta. No local, segundo ele, foram encontrados diversos corpos e apenas uma pessoa com vida. "O lugar foi completamente destruído pela lama."
Ao avaliar os dias em que auxiliou os resgates, ele ressalta que a parte mais difícil foi acompanhar os corpos sendo encaminhados ao IML. "Outra parte triste é saber que tem gente que provavelmente nunca vai ser encontrada", lamenta.