Arrancaram minha alma, diz mãe de Jean Charles após 10 anos
"Eu não queria que ele fosse para Londres, mas ele me dizia que tinha de lutar enquanto era novo", disse Maria de Menezes
Dez anos depois, a casa da família de Jean Charles de Menezes - brasileiro morto por engano pela polícia britânica após os atentados de Londres em 2005 - guarda poucos sinais de seu passado trágico: as centenas de jornalistas que invadiram o local dias após o incidente desapareceram e a única referência ao caçula dos Menezes é um pôster em inglês, na parede da sala. Mas ainda é um lar de memórias que, quando vêm à tona, continuam a causar dor e sofrimento.
Natural de Gonzaga, pacata cidade de 5 mil habitantes no interior de Minas Gerais, Jean Charles chegou à capital britânica em 2002 movido por um sonho que já levou milhares de brasileiros a tentar a sorte fora do país. Seu objetivo era juntar dinheiro e proporcionar uma vida melhor para a família.
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Na manhã do dia 22 de julho, há exatamente dez anos, ele saiu de casa para consertar um alarme de incêndio quebrado. Nunca mais voltou. Jean Charles foi morto na estação de metrô de Stockwell, no sul de Londres, por policiais à paisana. Tinha 27 anos.
Numa sucessão de erros já comprovados, a polícia o confundiu com Hussain Osman, um dos envolvidos nos malsucedidos atentados a bomba realizados contra a capital britânica na véspera. Um endereço descoberto em uma das malas repleta de explosivos que não detonaram – Scotia Road, Turse Hill – coincidentemente onde Jean Charles morava – teria sido o ponto de partida para a tragédia.
Lembranças
A família de Jean Charles – pai, mãe e irmão - continua a viver na mesma casa na zona rural de Gonzaga, onde só se chega após percorrer uma estrada de terra por cerca de 40 minutos de carro. Foi ali onde o menino que sempre gostou de consertar rádios velhos nasceu e passou boa parte da infância em meio a vacas e galinhas.
"Toda vez que ele não estava consertando alguma coisa, ele vinha me ajudar aqui na roça", relembra à BBC Brasil o pai, Matozinho da Silva, apontando para a horta repleta de pés de verduras e legumes.
"Jean era o técnico da vizinhança. Quebrou o rádio ou a TV? Era o Jean quem consertava", recorda a mãe, Maria de Menezes.
"Eu não queria que ele fosse para Londres, mas ele me dizia que tinha de lutar enquanto era novo. Jean sempre foi muito trabalhador e esforçado", acrescenta.
"Antes de ser morto, ele veio nos visitar. Passou dois meses aqui. Ele disse que não queria voltar. Foi a última vez que o vi com vida."
"Nunca pensei que eu enterraria o meu filho, porque o certo era que ele me enterrasse. Isso não sai dos meus pensamentos", diz.
Dez anos depois, Maria conta que evitar olhar retratos Jean e até escondeu os poucos que sobraram. Mas diz não conseguir esquecer o filho, fruto de uma gravidez difícil e que nasceu frágil "com 2,5 kg".
"Dois dias antes de morrer, sonhei com Jean. Estava deitada na cama e ele veio até mim. Mas não falou nada, nem tive tempo de falar com ele", conta, enquanto lágrimas escorrem por seu rosto.
"Me senti arrasada. Queria me destruir. Perdi minha alegria de viver".
A avó de Jean Charles, Zilda de Figueiredo, também lamenta a morte precoce do neto. Aos 93 anos "recém-descobertos" (ela acreditava ter 86), a matriarca da família diz que ainda perde o sono ao lembrar-se dele.
"Tem dias que deito na cama e perco o sono. Mas até hoje fico muito sentida pela morte daquele menino. Tenho vontade de sair gritando, doida", conta.
'Cidade de Jean Charles'
Na entrada de Gonzaga, uma placa imortaliza a morte trágica de seu cidadão mais ilustre. "Aqui priorizamos a VIDA. Terra de JEAN CHARLES, vítima do terrorismo em Londres. 22/07/2005". Ali, muitos moradores têm uma história para contar sobre o jovem que se aventurou em Londres. Um deles é Sandra Rabelo, professora de Matemática de Jean Charles.
Na escola estadual São Sebastião, onde dá aulas até hoje, ela relembra emocionada o "aluno brilhante e provocador" que conheceu ainda adolescente.
"Ele era um aluno muito questionador, que fazia o professor trabalhar. Às vezes eu saía do conteúdo sobre o qual eu estava trabalhando para atendê-lo. Tinha momentos em que eu falava: 'Jean, por favor, para de perguntar. Deixa eu atender aos outros alunos'. Ele queria eu fosse a professora particular dele."
"E ele saía da aula apontando para mim: 'Amanhã, você me deve essa resposta.' Jean era assim, sempre."
Justiça
Dez anos depois da morte de Jean Charles, ninguém foi processado ou preso. Amigos e parentes afirmam que vão continuar lutando por justiça.
"Imagine estar levando sua vida normal sem fazer nada errado e de repente levar um tiro na cabeça por alguém que deveria te proteger. Como isso pôde acontecer?", questiona o primo Alex Pereira. Os dois viveram juntos em Londres.
Alex foi um dos primeiros a receber a notícia sobre o incidente. Mas lidar com a repentina morte do primo foi apenas o início de uma "" marcada por "acusações e mentiras", conta ele, hoje dono de uma pequena borracharia de beira de estrada em uma cidade próxima à Gonzaga.
"Tive de me manter calmo para avisar a família sobre o que havia acontecido", relembra.
"Mas pouco tempo depois começou o festival de acusações e mentiras. Tínhamos certeza de que Jean não havia feito nada do que os policiais e a imprensa estavam dizendo. Ele não reagiu à abordagem policial, por exemplo. Foi revoltante", desabafa.
No que parece ser a última tentativa para responsabilizar o governo britânico e processar os policiais envolvidos na tragédia, familiares estão agora recorrendo novamente à Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo, na França.
Mas para a mãe de Jean Charles, nada disso fará o que gostaria: trazer seu filho de volta.
"Você acredita que eu ainda tenho futuro?", pergunta Maria à reportagem da BBC Brasil. "Eles arrancaram a minha alma".