'Céu é o limite' para Lava Jato após prisão de Lula, diz cientista político
Para Marco Aurélio Nogueira, captura de petista pode deixar o 'caminho livre' para avanço da operação sobre outros grupos políticos.
Após a ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a operação Lava Jato passa a ter "o céu como limite" se não sofrer qualquer interrupção, diz o cientista político Marco Aurélio Nogueira.
Em entrevista a BBC Brasil, Nogueira - professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) - compara a estratégia de investigadores envolvidos na operação à dinâmica do jogo de dominó.
"É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras", diz Nogueira. "No momento em que se consegue fechar o cerco e levar Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos".
Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ditadura militar, Nogueira foi detido durante um congresso da sigla e passou duas noites sob a custódia da Polícia Federal, em 1982.
Nos anos seguintes, afastou-se da vida partidária e passou a se definir como um "comunista democrático e sem partido". Paralelamente, tornou-se um dos maiores especialistas do país na obra do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), considerado uma das maiores influências da esquerda moderna brasileira.
Na entrevista à BBC Brasil, Nogueira diz ainda que o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro (PSL) deverá ser o maior beneficiado pela saída de Lula da eleição presidencial.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - Qual a relevância histórica da ordem de prisão contra Lula?
Marco Aurélio Nogueira - Do ponto de vista político, ela agrava a condição de Lula se manter como o candidato a presidente nas eleições.
Outro ponto é que, na medida em que uma decisão desse tipo alcança uma figura de porte tão grande, ela acaba por emitir sinais para a sociedade de que a Justiça está sendo organizada para valer. De que não há mais limites para se pegar eventuais corruptores ou corruptos estejam onde eles estiverem, sejam de que classe social ou de partido político eles forem.
BBC Brasil - Muitos argumentam que a Justiça não tem tratado o PSDB com o mesmo rigor com que trata Lula e o PT.
Nogueira - Não há como fazer comparação entre o tamanho do esquema montado no plano federal (durante o governo do PT) e os esquemas que foram montados pelo PSDB em São Paulo e Minas Gerais. O esquema federal era muito forte, havia muito dinheiro envolvido, muitas empresas, muitas ligações internacionais. Ali se tratava de comprar uma briga de cachorro grande.
BBC Brasil - Acredita que a Lava Jato manterá sua vitalidade após a prisão de Lula?
Nogueira - A Lava Jato tem atuado até hoje como se disputasse uma partida de dominó. É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras. Ela usou a estratégia de capturar o principal personagem da vida política brasileira, o Lula.
A partir daí, se a Lava Jato não sofrer uma interrupção, o céu é o limite. No momento em que se consegue fechar o cerco e levar o Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos.
Por isso, quase todos os partidos estão de alguma maneira solidários com o Lula. Pressionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) para aliviar a pressão em cima dele antes, o que livraria a cara de um monte de gente.
Hoje (sexta-feira) foi preso o principal operador do PSDB em São Paulo, o (ex-diretor da Dersa) Paulo Preto. Pode ser o início de alguma coisa. A Lava Jato poderá alcançar, via Procuradoria Geral da República, o (presidente) Michel Temer, como a operação Skala deixou claro. Há uma série de coisas que, se acionadas, poderão recompor o modus operandi do sistema político brasileiro.
Não acho que isso vá acontecer a tempo de interferir nas eleições de 2018. É um processo de mais longo prazo, que terá de se estender com todos os obstáculos que surgirem.
BBC Brasil - Qual o significado da prisão para a trajetória de Lula? Ele está morto politicamente?
Nogueira - A rigor, a morte política nem sempre se dá nem mesmo quando o fulano morre. A força política pode subsistir até mesmo a materialidade física de uma pessoa. Basta lembrarmos o tanto que Getúlio Vargas, depois de sua morte em 1954, interferiu na política brasileira.
Preso ou solto, acho que Lula vai continuar muito vivo. Não tem como ele sumariamente ser descartado da política brasileira simplesmente por um ato da Justiça que o enviou à prisão.
Há muitos recursos que podem ser mobilizados em termos simbólicos, ideológicos, organizacionais e partidários para manter vivo esse personagem - seja como fator real de interferência na política, seja como mito, herói ou mártir.
BBC Brasil - Como Lula poderia influenciar na eleição de 2018 se estiver preso?
Nogueira - Vai depender muito de que engrenagens forem montadas entre o Lula prisioneiro e o eleitorado brasileiro. Ele poderá influenciar na escolha de um candidato que vá substituí-lo e encarná-lo no processo eleitoral. Mas isso precisaria passar por uma discussão muito grande, que leve em consideração as dificuldades que o próprio PT sempre teve de substituí-lo como liderança.
Se o Lula na cadeia puder fazer campanha para outro candidato, que outro candidato será esse? O PT se preparou para apresentar uma alternativa? Tem lideranças que possam se colocar numa via de força semelhante ou próxima à do Lula? Não tem. Então isso complica muito as possibilidades de transferência.
Também vai depender muito da capacidade que os partidos pró-Lula tiverem para levar sua mensagem, como ventríloquos do Lula. Os partidos que giram em torno do PT são muito fracos. E o próprio PT está muito desbaratado com os fatos das duas últimas semanas.
BBC Brasil - Qual o potencial de uma outra candidatura do PT? Quem o senhor acredita ser o nome mais provável a substituir Lula?
Nogueira - Não consigo ver como o PT vai resolver esse problema. Eles já deveriam ter feito isso alguns meses atrás. Agora vai ser muito difícil, porque os políticos que foram aventados, como Fernando Haddad e Jaques Wagner, são políticos muito fracos, que não são digeridos por inteiro até pelo próprio PT. O Haddad sepre foi hostilizado no PT como um petista tucano.
Ficou muito difícil para o PT encontrar uma saída em termos de candidatura que realmente promova um crescimento ou mantenha pelo menos a força eleitoral do partido.
BBC Brasil - O PT sobrevive à prisão do Lula?
Nogueira - Sobrevive. Não sei se com a mesma força de antes, porque o partido sofreu muitas quedas de 2016 para cá, seja em termos políticos, com o impeachment e as derrotas nas eleições municipais, seja do ponto de vista jurídico-político. A combinação desses dois percursos acidentados deverá afetar o partido no que diz respeito à sua imagem.
O PT tenderá a perder uma parte grande da classe média, que era uma parte importante do eleitorado petista, e poderá até mesmo ter sua imagem queimada ou ofuscada entre a população mais pobre, que vai ter de digerir esse processo.
No caso da classe média, o cenário é mais difícil, porque ela é muito mais moralista que as massas populares. A massa popular, os eleitores pobres do Lula, são pragmáticos.
Eles são lulistas porque têm uma postura de agradecimento com o Lula, e, mesmo que ele seja corrupto, eles perdoam. Estão acostumados com a corrupção, não há um veto moral ao político corrupto no seio da população mais pobre. O que há ali é o reconhecimento do político que prestou algum tipo de benfeitoria social.
BBC Brasil - Quais os impactos da prisão de Lula para outros partidos de esquerda não tão alinhados ao PT e que lançaram candidatos à Presidência, como o PDT, de Ciro Gomes e o PSOL, de Guilherme Boulos?
Nogueira - Talvez isso se aplique ao Ciro Gomes, mas não ao PSOL. O Boulos está no palanque da resistência no Sindicato dos Metalúrgicos. Ele sempre foi uma liderança sintonizada com o lulismo. Boulos faz um certo tipo de crítica, mas é muito mais próximo do Lula do que qualquer outra figura do PSOL.
No caso do Ciro Gomes, ele tem uma trajetória política que só com muito esforço pode ser aproximada da esquerda. Ele não tem um partido propriamente de esquerda e já passou por tantos partidos que é difícil entendê-lo simplesmente como uma figura de esquerda. Pode-se dizer que é um progressista com uma carreira própria.
Ele terá de pensar como se aproveitar desse afastamento do Lula. Acho que Ciro agirá muito mais em função da oportunidade eleitoral do que de solidariedade a Lula. Ciro imagina ter chance eleitoral e, dentre os candidatos do progressismo, ele e a Marina Silva são os que de fato têm mais fôlego.
BBC Brasil - Ciro e Marina são os principais beneficiários da saída de Lula da disputa?
Nogueira - Não acho. Uma parte grande do voto do Lula vai para o Bolsonaro, porque ele está fazendo uma campanha que de alguma maneira copia certas práticas e procedimentos que foram típicos do Lula. Só que Bolsonaro faz isso com o sinal invertido. O Lula era bonzinho, o Bolsonaro é mauzinho.
Eles estão tentando construir por vias antagônicas uma narrativa de trajetória que se aproxima muito da ideia do salvador da pátria, daquele sujeito que assumirá o poder presidencial para varrer tudo o que há de errado no Brasil.
Se o Bolsonaro de fato ganhar, a gente sabe que não será bem assim. Tanto que o Lula de 2002 emergiu com um discurso desse tipo e foi se acomodando ao jogo político, fazendo alianças espúrias e deixando de fazer o que seu discurso de campanha anunciava, que era uma reforma social profunda no país.
O Bolsonaro que rosna para todos os lados e faz um discurso agressivo contra a esquerda, contra a proteção social, em favor de armas, se eventualmente ganhar a eleição, vai também ter de dimensionar esse discurso e negociar com as forças políticas que estão ali. Nessa operação, ele poderá ser completamente descaracterizado como um mauzinho.
BBC Brasil - Nos últimos dias nota-se um acirramento das tensões entre as instituições, como por exemplo no julgamento do habeas corpus de Lula no STF e nas declarações do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, interpretadas por muitos como uma pressão sobre o Judiciário. Como a prisão de Lula afeta o equilíbrio entre as instituições?
Nogueira - Isso vai depender muito de qual será a reação do PT, dos movimentos sociais e dos outros partidos. Se apostarem numa linha de resistência e combate, de enfrentamento, inclusive desafiando a Justiça, a gente estará num caminho de risco, no qual poderemos assistir uma maior corrosão do equilíbrio institucional do país e até mesmo uma espécie de revival da intervenção militar, que é uma coisa que funciona no Brasil como uma espécie de sombra da política.
Os militares estão sempre aí e sempre poderão ser estimulados e impulsionados a se intrometer na política.
Do ponto de vista do sistema como um todo, o grande problema hoje no país é como o sistema judiciário vai se recompor. Hoje, dentre todos os sistemas, até mesmo o sistema político, ele é o que conhece uma crise mais profunda e está todo dividido.
Não tem mais um centro de coordenação que faça valer a hierarquia do sistema. O próprio STF, que deveria o guardião desse sistema, está todo atrapalhado, porque parece estar enciumado com o protagonismo de uma corte de primeira instância, do juiz Sérgio Moro, e o sucesso que ele está tendo na relação com a sociedade.
Isso pode ser um fator de complicação, porque o sistema judiciário dividido acaba por comprometer seu serviço no que diz respeito às garantias, à liberdade etc.
BBC Brasil - Lula tem comparado o cerco judicial que enfrenta à perseguição sofrida por Getúlio Vargas. Os dois processos se equivalem? Há outros episódios na história do Brasil comparáveis ao cenário vivido por Lula hoje?
Nogueira - Já tivemos presidentes da República que foram presos ou exilados. Na Primeira República, Washington Luís foi mandado para fora do país após a Revolução de 1930. Mas o mundo era muito diferente, é difícil fazer uma comparação.
O Lula é muito diferente de todos que vieram antes dele. O que poderia ser mais próximo é o Getúlio. Mas Getúlio é um personagem do Brasil tradicional, que já desapareceu.
O curioso é que Lula se compare com Getúlio depois de fazer em sua carreira como sindicalista uma trajetória contrária ao getulismo. O sindicalismo do Lula era anti-getulista de maneira radical. Era um sindicalismo totalmente hostil ao trabalhismo getulista, tanto que comprou briga com os grandes sindicatos e parte dos partidos trabalhistas, como o PTB, o PDT e o Partido Comunista, que eram seguidores da estrutura sindical dos anos 30.
Outra diferença é que Getúlio se matou. Lula não dá nenhuma mostra de que fará isso.