'Ainda estou com medo': mulheres relatam casos de assédio em corridas de apps
Passageiras de diferentes estados compartilham experiências traumáticas ao tentar usar o serviço oferecido por empresas de transporte
Além dos casos de assédio sexual, mulheres de diferentes lugares do País compartilham outra denúncia sobre motoristas de aplicativo: a tentativa de dopá-las durante a corrida. Vítimas ouvidas pelo Terra indicam que ficaram com visão turva e sensação de desmaio enquanto estavam sendo atendidas pelos motoristas.
Uma produtora de 27 anos que prefere não se identificar lembra o que viveu no Rio de Janeiro, na manhã do Dia das Mães. Quinze minutos depois de a corrida ser iniciada, ela conta que sentiu um cheiro forte e uma pressão na cabeça. Logo ela ficou tonta e a visão, turva.
"As duas janelas de trás estavam fechadas e as duas da frente, abertas. Abri minha janela no máximo, que era manual, por sorte. Coloquei a cabeça toda para fora para respirar e vi que eu estava cada vez mais tonta. Foi nessa hora que lembrei de um relato que li sobre isso, de mulher dopada, e falei para o motorista que precisava vomitar, para que ele pudesse me deixar sair do carro", conta a jovem, que seguiu um conselho do pai.
"[Ele] sempre me ensinou isso, que em situações como essas de risco, eu falasse que queria vomitar, que aí a pessoa pararia na hora. É uma coisa que um pai não precisa ensinar pra um filho homem, mas precisa pra uma filha mulher".
A produtora conta que saiu do carro ainda com muita tontura. Do que lembra, o motorista teria perguntado se ela não iria voltar. Foi quando ela decidiu pedir ajuda para pessoas que estavam próximas, que a socorreram e lhe deram água.
A jovem não procurou à polícia, mas entrou em contato com a empresa responsável pelo aplicativo, que disse lamentar pelo ocorrido e que tomaria "medidas" contra o motorista - sem especificar quais. Em uma publicação que fez nas redes sociais, a produtora recebeu relatos de pelo menos dez mulheres que viveram o mesmo.
"Eu ainda estou com medo, em um processo de cura psicológica", lamenta.
Na semana passada, o Terra já havia noticiado situação semelhante vivida pela fotógrafa Bruna Custódio, 32. A passageira relatou que foi dopada por um motorista de aplicativo durante uma corrida na cidade de São Paulo. No início, ela pensou se tratar de crise de ansiedade ou que o odor vinha de fora do veículo, até se sentiu tontura, tremores e visão turva.
Assédios são comuns
Episódios mais escancarados e constrangedores de assédio também são comuns entre motoristas de carro particular. Uma jovem de 18 anos, que também preferiu o anonimato, conta que perguntou o valor da corrida e teve como resposta que um ato sexual pagava.
Segundo a autônoma, moradora de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, ela já fazia outras corridas com o referido motorista e seus amigos.
"Eu tenho 18 anos e ele parece ser bem mais velho do que eu. Nunca tinha me desrespeitado antes. Quando eu chamei ele, no dia desta mensagem, foi de manhã, e recebi essa resposta totalmente desrespeitosa e constrangedora. Acredito que foi intencional, porque logo abaixo ele mandou o valor", conta.
Segundo a autônoma, ela e o marido ficaram indignados com o que aconteceu e resolveram contar o ocorrido nas redes sociais para servir de alerta. Logo em seguida, o motorista ligou para pedir desculpas.
"Meu marido que atendeu. Ele [motorista] justificou que se enganou, que me confundiu com outra garota que conversava. Mas não tem desculpa para uma atitude dessas", desabafa.
A jovem afirma que nunca mais fez nenhuma corrida com este motorista e chegou a se sentir assustada ao ver ele na rua após o ocorrido. "Agora pretendo também registrar boletim e levar o caso à polícia", acrescenta.
Essa insegurança vivida pelas mulheres ouvidas pelo Terra faz parte do cotidiano de muitas outras, segundo a pesquisa 'Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade', realizada pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, com apoio da Uber e da ONU Mulheres. Dados de outubro de 2021 apontam que 81% das mulheres já sofreram violência em seus deslocamentos pela cidade. O estudo entrevistou 2.017 pessoas (1.194 mulheres e 823 homens), com 18 anos de idade ou mais.
A mesma pesquisa indica que 80% das mulheres combina de fazer parte do trajeto com outras pessoas - seja para andar, pegar ônibus ou dar carona. A segurança é o principal motivo dessa escolha.
A delegada Maria Luísa Dalla Bernardina Rigolin, autoridade policial à frente da Delegacia de Defesa da Mulher de Capivari e especialista em direito e segurança da mulher, explica que outros cuidados podem ser tomados. Entre eles: verificar a avaliação do motorista antes da viagem com o carro de aplicativo, compartilhar a rota da viagem com amigos e parentes, e, sempre que possível, não fazer viagens durante a madrugada.
"Se necessário fazê-la de madrugada, é melhor estar acompanhada de outra pessoa. Durante o trajeto avalie se há mudança de comportamento do motorista, um comportamento não-típico, e também mantenha-se atenta ao tipo de conversa que ele vai puxar. É muito importante também não ficar distraída no celular, verificar com atenção o que ele está fazendo e manipiulando ali na frente", recomenda.
Comportamento de risco
De acordo com a delegada, a mulher pode acender o alerta caso o motorista comece a puxar conversas de cunho sexual, fazer elogios demais e questionar sobre a vida pessoal da passageira - por exemplo, se ela tem namorado ou se bebeu.
"Também não se deve aceitar lenços, bala, água, e outras coisas nesse sentido que estiverem no veículo", acrescenta.
Em todos os casos, a delegada recomenda registrar o boletim de ocorrência em qualquer delegacia da Polícia Civil ou via Delegacia Eletrônica. Diante da autoridade policial, Maria Luísa recomenda que as vítimas sejam o mais detalhistas possível.
"As vítimas quando procurarem a delegacia devem mencionar nas declarações delas o que ele [suspeito] falou, o que ele fez de gesto, para que nós possamos configurar o que chamamos de dolo específico, ou seja, consigamos identificar qual era a intenção desses suspeito, se era roubar, lesionar, praticar um estupro de vulnerável ou até matar a vítima", explica.
De acordo com Maria Luísa, se o suspeito mantiver relação sexual com a vítima após ela ser dopada, o crime é tipificado como estupro de vulnerável. Com as investigações, o suspeito pode ser preso em flagrante, de forma temporária ou preventiva, se comprovada a prática criminosa.
O que dizem as empresas
Em nota enviada ao Terra, a Uber afirma que trata todas as denúncias com a máxima seriedade e avalia cada caso individualmente para tomar as medidas cabíveis, sempre se colocando à disposição das autoridades competentes para colaborar, nos termos da lei. Segundo a empresa, a única denúncia dessa natureza que já teve a investigação concluída pela polícia ocorreu em Canoas (RS), e não houve elementos de prática de crime.
A 99 alega que prioriza a segurança de todos os seus usuários antes, durante e depois das viagens, principalmente das mulheres. Para proteger as passageiras, a plataforma alega que possui inteligências artificiais, como a Ártemis, desenvolvida em parceria com a consultoria feminista Think Eva. O robô rastreia automaticamente e identifica uma série de palavras e contextos que podem estar relacionadas a assédio deixadas nos comentários ao fim das corridas, banindo agressores e direcionando atendimento humanizado às vítimas.
Ainda segundo a 99, todas as viagens são monitoradas em tempo real via GPS e os usuários têm à disposição recursos de gravação de áudio, compartilhamento de rota com contatos de segurança e botão para ligar direto para a polícia. A empresa disponibiliza o número 0800-888-8999 para atender passageiros e motoristas que tenham necessidade.
Já a Blablacar garante que não registrou nenhuma ocorrência do tipo, mas diz que está comprometida em oferecer um ambiente de viagem seguro e confiável para os usuários. A empresa afirma que verifica números de telefone, e-mails e fotos de perfil; realiza verificação do documento de identidade e oferece suporte aos membros da comunidade.
"A companhia disponibiliza, dentro da plataforma, a seção 'Reportar membro', para que usuários reportem a utilização inadequada do site ou app BlaBlaCar".