Ameaçada pela erosão, 'Vila Fantasma' no PR corre o risco de sumir
Diariamente, uma parte importante da história do Paraná e do Brasil é arrastada pelas águas, sem qualquer ação emergencial para conter a devastação persistente. Considerada Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera, títulos concedidos na década de 90 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e Patrimônio Natural e Histórico do Paraná, desde 1970, a Vila de Ararapira, pertencente ao município de Guaraqueçaba e localizada no Parque Nacional de Superagui, é o fiel retrato do desleixo dos órgãos responsáveis pela preservação da cultura, história e meio ambiente no País.
O local está abandonado e totalmente desprotegido. Ameaçada por uma persistente erosão, influenciada pelo movimento das marés e pela abertura do canal artificial, a vila está exposta ainda a ação de vândalos que deixam suas marcas em pichações, abandonam lixo urbano na mata, violam túmulos e roubam materiais históricos. São "aventureiros" atraídos por estórias de assombrações na "vila fantasma", alimentadas por barqueiros em busca de lucro. Pior ainda: o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pelo Parque Nacional do Superagui, sugere em sua página na internet, o local como roteiro de visitação, referenciando-o "como comunidade fantasma - igreja antiga - colonização". Autarquia especial do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o ICMBio ressalva apenas que o passeio não é incentivado "pela falta de segurança e por não contar com infraestrutura para visitantes".
Com a entrada permitida, qualquer pessoa com acesso a uma embarcação pode chegar à vila, sem obstáculos. Não há qualquer critério de controle, em contraste com a publicidade oficial que apregoa a preservação permanente da área. No início de janeiro, o Terra esteve na vila. O acesso pode ser feito a partir de Paranaguá, em uma viagem de duas horas em uma voadeira, canoa de alumínio com motor de popa. O roteiro mais procurado, no entanto, é a partir da cidade paulista de Cananéia em um trajeto que avança pela Baía de Trapandé, em meio a botos cinza, e percorre o canal do Ararapira no período de uma hora. Foi este o roteiro escolhido pela reportagem. Para a visita à "vila fantasma", donos de lanchas e voadeiras cobram, em média, R$ 140 por pessoa para ida e volta. Exigem que o passeio seja realizado no mínimo por quatro passageiros.
Erosão
A primeira visão de vila é de uma encosta coberta de tijolos desmoronados. No Marujá, uma comunidade no interior do Parque Estadual da Ilha do Cardoso no território paulista, Ezequiel Oliveira, dono de uma pousada e ex-morador de Ararapira, conta que a erosão já levou mais de 70 metros da planície costeira. "A água levou mais de vinte construções que havia ali", diz ele, lembrando que no meio dos desmoronamentos desapareceram prédios históricos da vila. "Os armazéns que abasteciam a região sumiram do dia para noite", conta Oliveira.
O pescador Rafael Silveira, outro ex-morador da vila e também residente no Marujá, a dez minutos de voadeira de Ararapira, tenta explicar a extensão de terra que desapareceu. "Quando eu era criança, atirava uma pedra para uma ilha em frente com as mãos. Hoje, nem com a ajuda de um estilingue essa pedra iria para o outro lado", afirma.
A velha igreja construída no século XVIII na vila permanece com as portas abertas. Um dos sinos de bronze ainda pode ser badalado. O outro desapareceu. A imagem original de São José, que datava da época da fundação da igreja, foi roubada no início de 2000, segundo ex-moradores, e outra foi colocada no lugar.
Na região, é possível ver garças, guarás vermelhos, sabiás, tucanos-de-bico-preto, papagaios-de-cara-roxa e outras dezenas de espécies. A fauna é diversa e, segundo relatos dos nativos, já foram avistados pacas, veados, cutias, porcos-do-mato, além de cobras caninanas, jararacas e corais. Outros frequentadores são primatas da espécie mico-leão-da-cara-preta, ameaçada de extinção. A flora é riquíssima nos manguezais e nos terrenos arenosos. Figueiras, maçarandubas e dezenas de espécies de bromélias e orquídeas compõem o ecossistema.
Vândalos
Os velhos caminhos da vila foram tomados pela mata e se transformaram em trilhas. Ao longo delas, os vestígios da passagem indesejada: latas de cerveja, garrafas plásticas, embalagens de alimentos e pedaços de tecidos de barracas. As construções mais antigas no interior de Ararapira estão abandonadas e invadidas pela mata. Moradias mais recentes ainda são visitadas ocasionalmente pelos proprietários e dispõem de geradores. Jozias, que viveu a infância na vila após ser adotado por um casal, mora em uma destas casas sozinho. "Andei o mundo e voltei para cá. Isto aqui é meu agora e aqui vivo tranquilo. Estou no paraíso e só me falta uma Eva", diz o homem que não quis ser fotografado.
A presença dele, no entanto, é quase imperceptível. De acordo com moradores da região, o homem sempre está presente nos vilarejos mais próximos e quando está em Ararapira, quase não anda pela vila. Jozias, que não revelou seu sobrenome, não quer falar sobre o local. Queria saber quanto o jornalista lhe pagaria por uma entrevista. Informado que a norma é não pagar aos entrevistados, ele voltou para o interior da casa onde vive há cerca de dois anos, ao lado de dois cachorros.
No final de uma trilha fechada, o cimento enegrecido de túmulos recobertos com limo mais parece um cenário de filme. O único cemitério da região ostenta lápides do final do século XIX. Alguns túmulos foram violados e crânios e esqueletos estão expostos.
História
São José da Marinha de Ararapira, primeiro nome da vila, foi o mais importante entreposto comercial entre a capital paulista e Curitiba na rota marítima entre as duas capitais, no início do século XX. Bem antes, no entanto, os primeiros portugueses que chegaram ao Brasil já conheciam a área. Hans Staden, um mercenário alemão que participou de combates nas capitanias de São Vicente e Pernambuco no século XVI, relatou no livro Duas Viagens ao Brasil, editado em 1557, que em um dia de tempestade de 1547, ao se aproximar do local onde hoje está localizada a vila abandonada, “aproximou-se uma canoa repleta de homens, dentre os quais estavam dois portugueses, que nos perguntaram de onde vínhamos".
Após uma disputa entre São Paulo e Paraná pela vila, em 1922 ocorreu a homologação de um laudo arbitral de divisas pelo Congresso Nacional, considerando a área como território paranaense. Ponto estratégico de abastecimento, em 1930, o povoado já contava com energia elétrica fornecida por um motor a diesel, coisa rara até em áreas dos grandes centros urbanos, e sediava um cartório e uma delegacia, além da velha igreja construída no final do século XIX.
Segundo relatos de historiadores, a vila teve seu ápice de desenvolvimento entre as décadas de 40 e 50. Depois, Ararapira começou a enfrentar o declínio, com aberturas de estradas ligando o Paraná e São Paulo e a escavação do canal do Varadouro, para ligar a região lagunar de Cananéia a Baia dos Pinheiros, em Paranaguá. As estradas acabaram com a importância estratégica da vila e o canal artificial contribuiu para o inicio da erosão que continua engolindo Ararapira até os dias atuais. Foi o início do êxodo de moradores.
“Vila Fantasma”
Um vulto de mulher vestida branco acena para as embarcações no alto da encosta. Gemidos são ouvidos na velha delegacia tomada pelo mato. Na igreja, o sino badala sozinho, ressoando pela vila. Crianças enterradas no cemitério vagam pela vila. Estórias de assombrações não faltam na "Vila Fantasma", como se convencionou chamar Ararapira, apresentada assim até mesmo no site do ICMBio, órgão do governo federal. Recentemente, um apresentador de um programa de cunho sensacionalista transmitido por uma rede de emissoras, com sede na capital paulista, chegou a gravar um especial no local, com entrevistados dizendo que a trilha que leva ao cemitério "tem cheiro de sangue".
"É um desrespeito total aos nossos antepassados e a nós", diz Hamilton Xavier, presidente da Associação dos Moradores do Marujá, comunidade da Ilha do Cardoso em São Paulo, ex-morador de Ararapira. Para ele, as estórias são todas inventadas. "O pessoal que mora aqui sempre está por lá para visitar a igreja ou o cemitério e nunca viu nada disso. É uma exploração da boa fé das pessoas e não contribui em nada para preservação do lugar", disse.
Vivendo atualmente no Ariri, um bairro vizinho a Ararapira, um ex-morador, que prefere não ser identificado, explica as origens das assombrações. "Como o local está vazio, muitos aventureiros que invadem a área começaram a espalhar que era uma Vila Fantasma. Violaram túmulos e ossadas ficaram à mostra. Alguns barqueiros de Cananéia resolveram tirar proveito da situação para atrair pessoas dispostas a pagar uma viagem até lá. E foram criando as estórias de assombrações", contou.
O homem, que é pescador, vai detalhando a origem de cada estória. "Em 2000, a última moradora da vila, morreu durante uma viagem à Paranaguá, O barco em que ela estava com o filho, de sete anos, naufragou. É esta a mulher que eles dizem que aparece na encosta. Um desrespeito com os parentes dela. Os túmulos pequenos, não são apenas de crianças. Os moradores enterravam antigamente em cova rasa, a sete palmos abaixo da terra. A terra retirada era depositada na cova ficava uma sobra, devido a presença do corpo, parecendo que era um túmulo de criança. Na delegacia, ninguém ficava mais de um dia. Na cela só ficavam bêbados, liberados depois para curar a ressaca. Então ninguém ia ficar gemendo. Nunca houve tortura ou morreu gente lá", garantiu.