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Boate Kiss: 'Festa era um labirinto, quase não consegui sair', diz 1ª testemunha em júri

Funcionária do estabelecimento conta rotina de festas e desespero no dia da tragédia, que teve 242 mortos; segundo ela, uso de pirotecnia era comum

1 dez 2021 - 21h49
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PORTO ALEGRE - Foi por muito pouco que Kátia Giane Pacheco Siqueira pôde estar presente nesta quarta-feira, 1º, no Foro Central de Porto Alegre para ser a primeira testemunha no julgamento do caso Boate Kiss, que pegou fogo em Santa Maria (RS). Ela era funcionária do estabelecimento, trabalhava na cozinha naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013 e está entre os 636 sobreviventes feridos no incêndio, mas poderia ser uma das 242 pessoas que nunca deixaram o local.

"A Kiss era um labirinto, eu mesmo trabalhava lá e quase não consegui sair", disse Kátia, durante o depoimento. Quando se iniciou o incêndio ela estava na cozinha, preparando lanches para os clientes, junto à colega Janaína, jovem que morreu na tragédia. Ao perceber que havia algo errado, Kátia teve dificuldade de deixar o espaço, que ficava relativamente próximo à saída.

"Escutava gente gritando que era fogo e gente gritando que era briga. Não sabia o que estava acontecendo. Quando senti que era fogo mesmo, respirei fundo e tentei sair. Mas tinha gente empurrando porque a porta da cozinha era perto dos banheiros, e tinha gente imaginando que o banheiro era a saída", relatou ela. Relatos da época indicam que diversos corpos foram encontrados no banheiro após o incêndio.

Alguns fatores contribuíram para a confusão dos clientes. Segundo o depoimento, quando o incêndio começou, faltou luz na boate, o que teria dificultado a orientação, apesar de algumas luzes de emergências que foram acesas. Ainda conforme a testemunha, os extintores de incêndio eram retirados antes das festas. Um dos motivos seria que alguns clientes já teriam brincado e esvaziado extintores em ocasiões anteriores. Havia, também, na entrada e saída do estabelecimento, barras de contenção para organização interna e divisão de setores, que teriam atrapalhado a fuga das vítimas. Não haveria comunicação entre os seguranças da casa, o que teria causado demora para identificação do ocorrido e auxílio para a saída.

Em vários momentos do júri nesta quarta, foi usada uma maquete digital 3D da boate, que ajudou a elucidar algumas questões e detalhar os eventos para o juiz Orlando Faccini Neto, para os procuradores, os advogados de assistência da acusação, representada pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e para as defesas dos réus Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da Kiss, Marcelo de Jesus dos Santos, músico, e Luciano Bonilha, produtor musical.

Ainda segundo a testemunha, shows pirotécnicos não eram novidade da boate. Eram, diz ela, frequentes - o que contraria o argumento das defesas de dois dos quatro réus de que os sócios não saberiam a intenção da banda Gurizada Fandangueira de realizar apresentação com sinalizadores. A depoente afirmou que outras bandas já haviam realizado apresentações parecidas, além de que a própria boate oferecia espumantes com pequenas velas com chamas, o que era moda na época.

Pouco depois da dificuldade de deixar o local, por causa das pessoas que pensavam que nos banheiros se localizava a saída, Kátia desmaiou, ainda dentro da boate. Ela não relatou quanto tempo ficou desacordada, mas retomou a consciência quando algumas pessoas perguntaram se ainda tinha gente dentro do local.

"Pedi ajuda. Duas pessoas tentaram me tirar lá de dentro, mas tinha gente em cima de mim. Tentaram me puxar e não conseguiram. Iam me deixar lá dentro. Então eu me agarrei nas pernas de alguém, de maneira que não conseguia se desvencilhar, foi quando fizeram força para me puxar e saímos de lá".

O depoimento de Kátia começou pouco depois das 14h e se estendeu por quase 5 horas. Ela perdeu cerca de 50 amigos, colegas e conhecidos naquela noite. Teve 40% do corpo queimado e, ao chegar ao hospital, desmaiou novamente e só acordou 21 dias depois, entubada, já em Porto Alegre.

"Tentaram me desentubar. Tive uma parada cardiorrespiratória e tiveram que me entubar de novo às pressas", contou ela. Nesse momento, Kátia começou a chorar, antes de conseguir prosseguir: "falaram que iam tentar me entubar de novo e, se caso eu não resistisse iam me deixar morrer, porque meu organismo tinha de reagir e ele não estava reagindo".

Foi com a ajuda e o estímulo da mãe que Kátia teve forças para lutar contra a morte: "Coloquei na cabeça que queria viver e o organismo começou a dar resposta". Ao todo, ela ficou 46 dias no hospital, e até hoje, quase 9 anos depois, necessita de acompanhamento dermatológico para tratar das queimaduras no corpo.

A testemunha Kellen Leite Ferreira também presta depoimento nesta quarta. Na quinta-feira, 2, continuam os depoimentos de testemunhas.

Estadão
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