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Caso Flordelis: as polêmicas por trás da história da 'família modelo'

Evangélicos, Flordelis e Anderson se conheceram na igreja. Juntos, criavam 55 filhos entre biológicos e adotivos e construíram uma imagem de bondade. Mas dados da investigação mostram os conflitos e disputas de poder na família

5 set 2020 - 22h02
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Com oratória de causar inveja e o cabelo sempre penteado para trás, o pastor Anderson do Carmo conduzia seus cultos com bom humor. Durante a pregação, alternava leituras de versículos bíblicos com episódios da própria biografia. Para tentar prender a atenção dos fiéis, forçava uma voz gutural sempre que a narrativa sofria reviravoltas ou atingia o clímax.

Uma das passagens mais exploradas era sua história de amor com Flordelis, que ficou conhecida por acolher crianças em situação de vulnerabilidade e terminou eleita deputada federal em 2018. Segundo conta, os dois se conheceram em uma igreja na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, em 1991, época em que ela já havia começado a recolher jovens abandonados.

Pastor Anderson Carmo foi morto a tiros em junho de 2019 ao chegar em sua casa, em Niteroi
Pastor Anderson Carmo foi morto a tiros em junho de 2019 ao chegar em sua casa, em Niteroi
Foto: Deputada federal Flordelis/ Instagram / Estadão

"Quando eu vi a Flor cantar pela primeira vez, fiquei tão emocionado que falei: 'Vai ser aqui que eu vou membrar, Jesus'", conta o pastor, em culto disponível no Youtube, para uma plateia lotada. "Comecei a me envolver com o trabalho de evangelismo para me aproximar dela, até que um dia fiz uma proposta: 'Flor, desculpa, mas tem algo faltando no seu ministério. Está faltando um varão de Deus'. Ela olhou para mim e abriu um sorriso."

No início do relacionamento, Anderson era um adolescente de 15 anos e começava a liderar um grupo de jovens da Assembleia de Deus. Por sua vez, Flordelis cantava e tocava guitarra nos cultos e declarava já ter feito pregação até na porta de baile funk. Na igreja mesmo, não pastoreava. A denominação não aceitava mulheres à frente dos cultos.

Recém-separada do primeiro marido, ela também tinha o dobro da idade do novo varão: 31 anos. Na época, a missionária já cuidava de ao menos cinco crianças recolhidas, além dos seus três filhos biológicos - são dois rapazes, Flávio e Adriano dos Santos Rodrigues, e uma moça, Simone, considerada seu xodó e braço direito.

Nessa época, o pai e mãe de Anderson eram vivos, mesmo assim ele preferiu ir morar com Flordelis. Em uma casa de dois quartos, sala e cozinha no Jacarezinho, espremiam-se bebê, crianças e adolescentes que ela alega ter resgatado do tráfico ou das calçadas do Rio. Pobre e numerosa, a família dependia de doações para sobreviver.

Anderson e Flordelis se casaram em 1998. Entre filhos biológicos da missionária, adotados e socioafetivos (aqueles que nunca tiveram a situação regularizada na Justiça), teriam criado um total de 55 jovens, muitos deles com histórias comoventes. Na casa, haveria desde recém-nascido abandonado no lixão, a ex-integrantes de facções criminosas e sobreviventes da Chacina da Central do Brasil.

Com o tempo, Flordelis também começou a colecionar aparições em jornais e problemas com a Vara da Infância e Juventude. Para fugir da Justiça, teria pulado de casa em casa e até dormido na rua. Entre a década de 1990 e início dos anos 2000, a família viveu nos bairros Irajá, Parada de Lucas, Rio Comprido e Gamboa, no Rio, além de Colubandê e Mutondo, em São Gonçalo.

Rejeitado por "pais espíritas", o pastor Luan dos Santos tinha 15 anos na época que foi acolhido. Segundo relata, Flordelis levava a família para "evangelizar" à noite, peregrinando pela cidade e entregando mantimentos a desabrigados. Com o passar dos anos, a evangelização foi se transformando no Ministério Flordelis, a igreja da família, hoje com sede em Mutondo.

Nos tempos de carestia, todos tinham função na casa e os irmãos adolescentes precisavam cuidar dos mais novos. Parte deles, por exemplo, dava banho nos menores. Uns eram responsáveis por recolher doações nas ruas e em feiras. Outros organizavam a comida e procuravam vaga em escolas. Também havia filhos destacados para falar sobre a mãe a quem parasse para ouvir.

Embora fosse da mesma faixa etária de alguns filhos, Anderson foi se consolidando como o administrador da casa e da igreja. Inteligente e bem articulado, ele seria "a mente por trás" da transformação de Flordelis em uma espécie de "marca".

O ano de 2009 é decisivo para o boom financeiro do casal. Em outubro, seria lançado o filme Flordelis: Basta Uma Palavra Para Mudar, recheado de atores globais que dispensaram cachê para retratar a vida da missionária. Nele, Anderson atuou como produtor.

Foi nessa época que Flordelis fechou contrato com a gravadora MK Music, uma das maiores do universo gospel, iniciando uma rotina de convites para shows e grandes eventos. Em alta, a igreja da família começou a abrir filiais, como em Jardim Catarina, Itaboraí, Itaipuaçú, Pendotiba e Piratininga.

No início da década, o casal conseguiu comprar uma casa espaçosa em um condomínio em Pendotiba, Niterói. São três pavimentos, sala de oração, garagem, quintal e empregada doméstica de segunda à sexta-feira. Foi lá que Anderson foi executado.

Investigação revela privilégios para os primeiros filhos e suspeitas de abuso sexual

Com as suspeitas do crime recaindo sobre Flordelis, a igreja acabou rebatizada de Comunidade Evangélica Cidade do Fogo. Já com a denúncia do Ministério Público, oferecida no mês passado, a missionária perdeu o contrato com a MK Music.

Uma série de episódios que não haviam sido contados no filme ou nos cultos também foi trazida à tona pela investigação policial. Ao contrário da história conhecida, Anderson começou a frequentar a casa de Flordelis na década de 1990 porque namorava com Simone, a filha biológica da missionária, relação que depois foi trocada pela mãe.

"Com o fim do namoro com Simone, Flordelis foi na casa da mãe de Anderson e pediu autorização para levá-lo para orar nos montes", descreve o advogado Ângelo Máximo, que representa a família do pastor no processo. "Ele nunca foi adotado por ela: eram um casal."

Mãe do pastor, Maria Edna do Carmo morreu aos 65 anos, vítima de um de enfarte provocado por pico de glicose, dez meses após o filho ser assassinado. Uma das primeiras a acusar Flordelis de mandar matar o marido, a irmã Michele do Carmo de Souza, de 39, falecera de anemia pouco antes, em outubro. "Infelizmente, partiram sem ver Justiça", diz Máximo.

São comuns depoimentos relatando que Flordelis e Anderson agiam para distanciar filhos adotivos das famílias biológicas. Considerado uma das principais testemunhas de acusação, Luan Santos, por exemplo, afirma ter sofrido uma "lavagem cerebral". "Ao se casar em 2008, Anderson o proibiu de convidar os pais biológicos. A mãe também não gostava da noiva. No dia do casamento, foi a última a chegar e vestia uma roupa preta", relata no processo.

Muitos discordam também que a casa era um ambiente de solidariedade e cooperação, como dizia o casal. Segundo testemunhas, Flordelis faria distinção entre os filhos e priorizava a chamada "primeira geração" - ou seja, os biológicos e primeiros a ser adotados.

O grupo tinha direito a despensa separada do restante da casa, enquanto os demais ficavam restritos à "geladeira pública". Também ganhava melhores presentes e até mais dinheiro, de acordo com os relatos. "Nem todos gozavam das mesmas regalias. Isso causava constrangimento aos outros irmãos", diz uma testemunha. "Os biológicos passeavam mais e ganhavam roupas. (...) Com a declarante, não tinha um tratamento de amor de mãe e filha."

Anderson é descrito por testemunhas como "rígido" e "ambicioso". Responsável por administrar as finanças, também é acusado de "centralizar o dinheiro" e provocar crises na família, como da vez que ordenou que filho assalariado deveria pagar o próprio plano de saúde. De acordo com a polícia, os mais incomodados eram os membros da "primeira geração".

No inquérito, também consta declaração de um ex-integrante do Ministério Flordelis, segundo a qual pessoas da igreja realizavam "rituais tenebrosos" e havia "práticas sexuais entre seus membros". O depoimento teria sido confirmado por um ex-pregador, que disse nunca ter presenciado estudos teológicos no local. As reuniões, afirma, só serviam para discutir negócios: "É uma seita com aparência de congregação religiosa (...) em nada tem a ver com aquilo escrito na Bíblia".

Um dos filhos adotivos afirmou ter sido submetido a uma espécie de "iniciação", de acordo com os investigadores. No episódio, supostamente ficara trancado por dias em um quarto, recebendo visita apenas de Flordelis para ter relações. Também há relato de que uma filha tenha sido oferecida a pastores estrangeiros - a Polícia Civil, no entanto, considera não ter provas suficientes para concluir se houve prática de abuso sexual.

Ainda assim, informações sobre possíveis intimidades do casal foram parar no relatório da investigação. No documento, o delegado incluiu o seguinte trecho: "(A testemunha) narra episódio em que sua ex-supervisora, em meados de 2007, ao aceitar o convite feito pela declarante e visitar a igreja de Flordelis, reconheceu a pastora como sendo frequentadora da mesma casa de swing que ela frequentava". "Complementando, inclusive, que a então pastora tinha um quarto exclusivo ali."

Existe a suspeita de que Anderson e Flordelis tenham ido a uma casa de swing em Botafogo, bairro nobre da capital, na madrugada do crime. Ao ser questionada na delegacia, a deputada declarou ter sido levada pelo marido a um restaurante em Copacabana, mas não soube informar nome ou endereço. A versão dela, entretanto, não bateria com dados de monitoramento de tráfego colhidos pela polícia.

Estadão
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