Desembargador que ofendeu guarda tem histórico de polêmicas
'Acabei sendo vítima de uma verdadeira armação', respondeu desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira sobre o caso
Quando rasgou e jogou no chão a multa aplicada pela Guarda Municipal de Santos por caminhar sem máscara na praia, no sábado, 18, e ainda se referiu ao oficial como "analfabeto", o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, aumentou o histórico de episódios polêmicos em sua carreira, com traços de autoritarismo.
A atual desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, Maria Lúcia Pizzotti, processou o colega por injúria e difamação em 1990. Quando estava no início da carreira, o desembargador depôs contra ela, tentando impedir que se tornasse juíza com direito a vitaliciedade, uma espécie de confirmação na carreira no início da vida profissional da magistratura.
Na decisão, o magistrado que analisou o caso considerou que uma testemunha não pratica ato de injúria ou difamação ao depor. Foi uma decisão polêmica. Pizzotti recorreu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), mas houve decadência (prescrição) da ação. "A decisão final não era o mais importante. Importante era minha atitude. Havia uma pressão para que eu desistisse. Eu fui obrigada a ser firme desde o começo da minha relação com ele. Por isso, eu tive de processá-lo", afirma a desembargadora, a 20ª juíza do Judiciário estadual.
Relatos de bastidores indicam gritos e humilhações diante de funcionários do endereço da praça João Mendes. Em outro episódio mais grave, em 2013, o desembargador teria ordenado ao seu motorista, que conduzia o carro oficial do tribunal na Rodovia dos Imigrantes, no sentido do litoral, que "passasse por cima" da cancela do pedágio, pois não queria esperar a liberação do veículo para passagem sem pagamento. O episódio foi relatado ao Estadão por pessoas diferentes. O Tribunal de Justiça informa que "nesse período, o processo era físico e não há como pedir o desarquivamento para hoje". Consultada, a concessionária Ecovias, que administra a rodovia dos Imigrantes, informou que "desconhece o episódio".
Reincidência
No episódio de desrespeito ao uso de máscara, o desembargador Eduardo Siqueira é reincidente. No fim de maio, ele já havia discutido com um inspetor da guarda civil pela mesma razão. Também existem vídeos que registram o episódio. Quem descumpre o decreto está sujeito à multa de R$ 100, valor que é dobrado em caso de reincidência. No final de semana, 62 pessoas foram multadas em Santos, de acordo com a prefeitura. As praias estão liberadas desde o dia 5, para esportes individuais, como natação, surfe e banho de mar. Permanecer na areia para tomar sol, por exemplo, está proibido. O calçadão e a faixa de areia podem ser utilizados para corrida e caminhadas.
O guarda civil municipal Cícero Hilário Roza Neto, 36 anos, que aplicou a multa, teve de explicar à filha de 15 anos o que havia acontecido tamanha a repercussão do vídeo. "Quando cheguei em casa, minha filha perguntou o que eu tinha feito. Eu disse que só fiz o meu trabalho, que fui até o cidadão de forma educada e o orientei a colocar a máscara. Ela achou que dei um bom exemplo", diz o guarda. "O que me deixou mais chateado foi ser chamado de analfabeto. Ele perguntou se eu sabia ler, se sabia com quem eu estava se metendo e rasgou a intimação", desabafou.
Cícero estava acompanhado de outro guarda municipal, Roberto Guilhermino da Silva, 41 anos, que filmou a ocorrência pelo celular. O prefeito de Santos, Paulo Alexandre (PSDB) prometeu homenagear os dois."É delicado ver o seu parceiro passando por esse tipo de constrangimento. Ele teve a calma e a postura adequada. Ele não se deixou levar pela emoção e agiu pela razão."
O corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, determinou, em ofício, a abertura de pedido de providências para apurar a conduta do desembargador. Martins também intimou o magistrado para prestar informações sobre o caso em 15 dias. Para o corregedor, os fatos podem caracterizar conduta que infringe os deveres dos magistrados estabelecidos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e no Código de Ética da Magistratura.
Após a investigação, caso a Corregedoria encontre indícios de infração de conduta, há dois tipos de punições possíveis - disponibilidade e aposentadoria compulsória. A primeira pode ser revertida: o magistrado fica afastado da corte, mas continua recebendo salário. Já a segunda implica a saída do desembargador dos quadros do tribunal, mas também recebendo aposentadoria.
Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam que as punições dependem de uma investigação mais detalhada do caso. Em tese, apontam advogados, o desembargador cometeu os crimes de desacato - ao destratar o policial -, abuso de autoridade, tráfico de influência - ao ligar para o secretário de Segurança de Santos -, e também de injúria, ao xingar o policial de analfabeto. Além de descumprir o uso obrigatório de máscaras.
Outro lado
O Estadão enviou uma mensagem ao Tribunal de Justiça de São Paulo e também ao gabinete do desembargador pedindo uma entrevista com Eduardo Siqueira. Ele não respondeu até o fechamento desta edição. Em nota, o desembargador reconhece a autenticidade do vídeo com os guardas no canal 6, em Santos, mas afirma que a peça foi tirada do contexto.
"O vídeo é verdadeiro, o fato realmente aconteceu, mas foi tirado do contexto, que eu gostaria de esclarecer, para que seja considerado nesse verdadeiro julgamento público - ou melhor, linchamento - que se estabeleceu sobre a minha conduta, sem que a minha versão dos fatos seja conhecida", escreve o magistrado.
Siqueira afirma que o momento de uma pandemia politizada tem sido usada para justificar abusos. "Um desses abusos, a meu ver, é a determinação, por simples decreto, do uso de máscara em determinados locais, o que ocorreu aqui em Santos e em outras tantas cidades e Estados do País. Os cidadãos brasileiros, entretanto, só são obrigados a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei. Este preceito está na Constituição da República. Decreto não é lei, portanto, entendo que não sou obrigado a usar máscara, e que qualquer norma que diga o contrário é absolutamente inconstitucional",
"O incidente ocorrido na praia, entre mim e os agentes da Guarda Civil de Santos tem esse pano de fundo e não foi o primeiro, daí minha exaltação. Não vou aceitar, Magistrado que sou, os direitos dos cidadãos serem ilegalmente tolhidos e cerceados. Tomarei providências cabíveis para que meus direitos sejam preservados e para que os verdadeiros vilões respondam por seus atos", escreveu.
"Acabei sendo vítima de uma verdadeira armação. A abordagem foi editada e completamente diferente das que recebi antes, mas com uma câmera previamente ligada, fazendo parecer que de vítima sou o vilão", encerrou.
Entenda o caso
As gravações que circulam nas redes sociais mostram a abordagem desde o início, quando um guarda municipal pede que o desembargador coloque a máscara. Em resposta, o magistrado diz que não usa o equipamento por hábito. O guarda cita o decreto municipal de abril, mas Siqueira retruca: "Decreto não é lei". O desembargador afirma: "Você quer que eu jogue na sua cara? Faz aí a multa". O oficial diz então quem vai registrar a autuação. Em resposta, o desembargador diz que vai ligar para o Secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel.
Na suposta ligação, ele se apresenta e diz: "Estou aqui com um analfabeto de um PM seu. Eu falei, vou ligar para ele (Del Bel) porque estou andando sem máscara. Só estou eu na faixa de praia que eu estou. Ele está aqui fazendo uma multa. Eu expliquei, eles não conseguem entender". O oficial pede o nome do desembargador. "Não sou obrigado a dar", afirma o magistrado. O guarda pede o documento do desembargador. "O senhor sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo", responde Siqueira. Em seguida, o desembargador rasga a multa e a atira no chão.