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Dois anos após massacres, presídios mantêm precariedade

Relatório aponta que menos de 5% das sugestões para garantir direitos dos detentos foram cumpridas

28 nov 2018 - 03h11
(atualizado às 08h09)
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SÃO PAULO, NATAL E BOA VISTA - O massacre de 126 detentos há quase dois anos em três presídios brasileiros não foi suficiente para impulsionar mudanças significativas nesses locais. Superlotadas, as unidades prisionais em Manaus, Boa Vista e Nísia Floresta, na Grande Natal, ainda convivem com uma rotina de violações distante de representar o efetivo controle e a adequada assistência do Estado aos apenados.

Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão do Ministério dos Direitos Humanos, aponta que os Estados cumpriram menos de 5% das 185 recomendações feitas visando a melhorar a estrutura das cadeias, garantir direitos dos presos e investigar devidamente a responsabilidade dos massacres, reparando os parentes das vítimas.

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, onde foi registrado um dos massacres
O Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, onde foi registrado um dos massacres
Foto: Reprodução/Twitter / Estadão Conteúdo

Os peritos, que voltaram a visitar os presídios logo após as mortes e neste ano, constataram diversos problemas. Na Penitenciária de Alcaçuz, onde 26 detentos foram assassinados, a rotina imposta pelos agentes do local configura, segundo os especialistas, tortura física e psicológica semelhante à notada na cadeia de Abu Ghraib, no Iraque.

Dizem os peritos que a rotina de revistas em Alcaçuz expõe os detentos a nudez. Os procedimentos de abordagem dos agentes, em que detentos não podem olhar ou se dirigir a eles, e os relatos de "agressões preventivas" criam "ambiente de profundo constrangimento e humilhação, que agride a autoestima, subjuga e provoca intenso sofrimento psíquico da pessoa presa."

Além disso, nos casos do Rio Grande do Norte e de Roraima há pessoas consideradas desaparecidas, pois estavam no presídio no momento dos massacres, mas não foram dadas como mortas nem consideradas foragidas. São 15 pessoas nessas condições em Alcaçuz, mas o número pode subir para 32, pois para outros 17 o Estado não explica os elementos que o levou a considerá-los foragidos. Em Roraima, são sete pessoas.

"Conclui-se que a visibilidade dos problemas prisionais provocada pelos massacres não modificou a condição do Estado brasileiro, repetindo soluções paliativas e ações reativas, com maior ênfase em afastar-se de suas responsabilidades sobre os massacres do que em dar conta das questões que envolvem os grupos vitimados", escreveram os peritos no relatório final, que será divulgado nesta quarta-feira, 28, pelo Ministério dos Direitos Humanos. "Apesar das iniciativas bem-intencionadas, a visão e a determinação para sair do ciclo vicioso da repressão-violência não se colocaram como prioritárias", acrescentaram.

O relatório diz não ter sido observado resultados satisfatórios quanto à apuração, responsabilização e reparação dos massacres. No Amazonas, mais de 200 pessoas foram denunciadas à Justiça pelo envolvimento com os assassinatos. Mas em Roraima e no Rio Grande do Norte, as apurações pouco caminharam. Os peritos destacam ainda que nenhuma investigação dedicou atenção ao papel dos gestores nas causas dos ataques, desde diretamente por meio de facilitação de entrada de armas, como denunciado em Manaus, até indiretamente quanto às condições de precariedade dos presídios que levaram à potencialização da força das facções.

Em virtude disso, o Mecanismo pedirá a entrada do Ministério Público Federal na investigação das pessoas desaparecidas no Rio Grande do Norte. Em reunião com promotores potiguares, os membros do órgão disseram ter ouvido desses representantes do Ministério Público que é cogitada a possibilidade de ser solicitada a federalização da investigação do massacre. Consultado nesta terça-feira, 26, sobre a informação, o Ministério Público potiguar disse que não procede que essa saída tenha sido estudada.

"Muito mais que 'meros acertos de contas' ou 'brigas entre facções', tais declarações (referindo-se a declarações de gestores que ligaram os massacres a brigas entre facções) entendem o conflito entre grupos organizados no interior de unidades prisionais como algo dissociado dos problemas de gestão, ao mesmo tempo em que, de forma implícita, subestimam a responsabilidade do Estado no acompanhamento de rotinas, na prevenção de conflitos e preservação da vida e integridade física dos custodiados", destacam os especialistas.

"O Estado tem uma baixa capacidade de resposta tanto em situações de crise como no desenvolvimento de políticas mais estruturais para a área. No momento dos massacres, foram tomadas medidas de urgência, mas o assunto acabou sendo esquecido tempos depois. Faltam respostas para a realidade atual da política penal, marcada por violência e morte", disse ao Estado a coordenadora-geral do mecanismo, Valdirene Daufemback.

Apesar de crise, recursos do Funpen são subutilizados

Apesar do cenário de precariedade, os recursos milionários repassados pelo Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) estão sendo subutilizados. Em dezembro de 2016, o governo repassou cerca de R$ 44 milhões para cada Estado; o Rio Grande do Norte aplicou 17% da verba, o Amazonas, 14,8%, e Roraima, 2,8%. Em 2017, foram mais R$ 21 milhões. O RN gastou 4,5% e os Estados do Norte não aplicaram nenhum centavo do recurso até outubro deste ano, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

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No Estado do Amazonas, onde os avanços foram considerados mais significativos, foram monitoradas 51 recomendações: 4% delas foram cumpridas e 30% foram iniciadas. Por outro lado, 31% dos apontamentos foram lidados apenas de maneira paliativa, enquanto 35% das recomendações não foram cumpridas.

Considerou-se que medidas importantes foram tomadas para o cumprimento da recomendação em dois casos no Estado: providências para evitar a violência interna dos presídios, como a instalação de câmeras e aumento do efetivo de segurança, tendo sido observadas, durante a visita, medidas arquitetônicas para criar etapas de acesso às áreas internas que ampliaram o controle e segurança, assim como a instalação de equipamento de bodyscan.

Sobre a recomendação de o Estado abster-se de utilizar a Polícia Militar em estabelecimentos penais para fins de guarda e vigilância intramuros, tão somente destinando-a a pronta resposta para o enfrentamento da crise de segurança, os peritos identificaram que a Polícia Militar tem atuado em casos de revistas periódicas ou situações de crise, assim foi considerado que houve providências relevantes para a retirada da PM da rotina prisional.

Por outro lado, o relatório aponta indícios quanto à irregularidade e à insuficiência do fornecimento de água; aos problemas com a qualidade da comida; à ausência de atendimento odontológico; à ausência de oferta de oportunidade de trabalho; à insuficiência de colchão; às mudanças arbitrárias por parte de alguns funcionários de itens permitidos de entrada para os visitantes; as dificuldades de atendimento de saúde, em especial, quando é necessário o transporte para assistência externa; falta de medicação; má qualidade de alguns itens do kit higiene e a irregularidade na entrega; violência e abuso de autoridade nos procedimentos de revista.

No sistema potiguar, foi monitorado o cumprimento de 73 recomendações. Dentre elas, 1% foi cumprida, 4% foram iniciadas e em 18% dos casos houve medidas paliativas. O relatório destaca que 77% das solicitações feitas não haviam sido cumpridas.

Os peritos constataram em Alcaçuz "o caráter exclusivamente repressivo, baseado na lógica dos procedimentos disciplinares, algum deles extremamente humilhantes, e na suspensão de direitos, não colaboram em nada para o enfrentamento da crise estrutural prisional, apenas a alimentam".

"A ampliação do uso da força como forma de gerir estabelecimentos penais, constituindo modos de atuar que dificultam a implementação de políticas e serviços adequados para a população privada de liberdade, impedem o cumprimento adequado da Lei de Execução Penal e criam diversas situações onde a prática da tortura é exercida com naturalidade por aqueles que deveriam custodiar as pessoas privadas de liberdade", descreveram.

Os especialistas criticam a "omissão das autoridades" na apuração dos desaparecimentos. O conjunto de indícios, sustentam, corroboram a possibilidade da existência de práticas de desaparecimento forçado.

O Estado apurou que o número de presos abrigados nas Penitenciárias Estaduais de Alcaçuz e Rogério Coutinho Madruga, cenário da rebelião que deixou 26 detentos mortos em janeiro de 2017, é mais que o dobro da capacidade nominal, de 1.022 vagas.

Enquanto o déficit de vagas nas carceragens potiguares se aproxima das cinco mil vagas, a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (Sejuc/RN) tem em caixa mais de R$ 50 milhões repassados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) para construção de novos pavilhões em pelo menos três penitenciárias estaduais e melhorias nos sistemas de segurança e compra de material de proteção individual para os agentes penitenciários.

Os recursos, porém, correm o risco de serem devolvidos por inutilização e se tornarem alvo de investigação do Ministério Público. A Sejuc/RN, em contrapartida, afirma que todos os processos seguem as diretrizes do Depen.

Em Roraima, o relatório aponta que a realidade de precariedade na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista, se estende há ao menos quatro anos. "As questões da PAMC e da política penal em Roraima têm sido tratadas de forma emergencial e, quando ocorre uma circunstância de crise, a resposta tem sido o aumento da restrição de direitos das pessoas presas, legitimação do uso indevido da força, transferências para o Sistema Penitenciário Federal, adoção de rotinas de exceção e uso de recursos para soluções caras e ineficientes."

A maior unidade prisional roraimense estava sendo comandada por líderes de facções criminosas, e ninguém entrava ou saia do presídio há vários meses. Os presos ficavam fora das celas e os líderes de facção tinham acesso as chaves e cadeados. Além disso, mais de 23 túneis já foram encontrados na unidade e cerca de 40 presos assassinados desde o ano passado. A situação motivou o pedido da Procuradoria-geral da República por uma intervenção federal no Estado. Os gestores federais assumiram o sistema penitenciário local nesta semana.

Em novembro, a juíza Joana Sarmento, da Vara de Execuções Penais do Poder Judiciário havia denunciado que o sistema prisional de Roraima, estava à beira de uma explosão. Ela denunciou falta de alimentação, falta de combustível para atendimento de demandas judiciais, falta de insumos básicos como papel e demais materiais administrativos, além do fato dos agentes penitenciários estarem sem receber salários há mais de 60 dias.

No final de 2016, o Governo do Estado anunciou a construção de uma unidade de segurança máxima para que pudesse comportar todos os presos, mas até hoje o projeto não saiu do papel. As obras no sistema prisional devem abrir mais 789 vagas, num investimento de R$ 33 milhões, além da reforma da PAMC, que custará R$ 10 milhões e deve melhorar as condições das celas para 420 detentos além de abrir mais 240 vagas, somando um total de 1029 novas vagas.

Não há como retirar gestão terceirizada, diz Amazonas

O secretário da administração penitenciária do Amazonas, coronel Cleitman Rabelo Coelho, destacou que as recomendações do Mecanismo não têm cumprimento obrigatório pelo Estado. "Quem decide é o governador", disse. Sobre as mudanças realizadas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) desde o massacre, ele destacou a "aplicação de ferramentas de controle" e "mudanças de procedimento". "A revista protege a integridade física do preso e evita rebeliões", acrescentou.

Sobre a recomendação para mudança no modelo de gestão, Coelho disse que o Estado não tem equipe técnica para substituir de imediato a cogestão adotada. "Estamos formando aos poucos corpo técnico para poder substituir as pessoas que estão no modelo de cogestão", disse.

A Sejuc/RN disse não ter tido acesso ao relatório e decidiu não comentar a situação. A reportagem não obteve retorno para as questões feitas para o governo de Roraima. A reportagem também solicitou entrevista com o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, mas não houve resposta da pasta.

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