'É fechar a torneira e rezar', pede Conselho Mundial da Água
Especialista em recursos hídricos, Benedito Braga cita motivos pelos quais São Paulo passa pela maior crise da história
“A curto prazo não há o que fazer. É uma situação absolutamente inédita e trágica. Agora temos que fechar a torneira e rezar”. Presidente do Conselho Mundial da Água, o brasileiro Benedito Braga, também professor de engenharia ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), é bastante realista em relação aos problemas de desabastecimento de água do estado de São Paulo, principalmente do sistema Cantareira, que fornece água para quase metade da população paulista.
Nesta quarta-feira, o nível do maior reservatório de água do Estado bateu recorde mínimo de 14,1%. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e o governador Geraldo Alckmin já haviam acendido o alerta vermelho quando o nível baixou de 35%, ainda em dezembro do ano passado, volume considerado “de segurança por especialistas”.
Benedito Braga acredita que três fatores fizeram com que a situação se tornasse alarmante: falta de chuva na região, que segundo o especialista é o principal motivo da seca; uso desenfreado da água existente; e complexidade na realização de obras e infraestrutura hídrica.
“Criou-se um emaranhado de leis e instituições no sentido de preservar a natureza, mas o resultado prático operacional é complicadíssimo. O projeto, que a implantação nos EUA ou Alemanha levaria um ou dois anos, aqui se levam dez porque depois que se decide tudo, com tem todas as licenças, vem o Ministério Público e diz: ‘espere, vocês falharam aqui’. E a obra é parada. Fora quando não muda de governante e interrompe o projeto. Isso precisa mudar. Precisa ser sim ou não no prazo de no máximo um ano. Precisamos de um sistema de infraestrutura hídrica que não dependa tanto de uma complexidade para implementação. Precisa ter coragem”, disse o presidente do Conselho Mundial da Água.
Em relação à polêmica entre Alckmin e o governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral sobre a retirada de água do rio Paraíba do Sul para abastecimento em São Paulo, obra que ficaria pronta apenas em dois anos, Benedito Braga acredita que não era necessário que o governante paulista reportasse à presidente Dilma Rousseff e muito menos à Agência Nacional de Águas.
“Esse reservatório foi construído com recursos do governo de São Paulo, o rio é estadual de São Paulo. A ANA não tem nada a ver com esse assunto, não sei por que vivem dizendo que a ANA tem que dar autorização. A responsabilidade dos rios do estado é do Estado. Claro que o governo de São Paulo não vai fazer isso sem se articular com a ANA, mas não perguntar se pode”, explicou.
Veja a entrevista com Benedito Braga na íntegra:
Terra: Como o desabastecimento poderia ter sido evitado?
Benedito Braga: É uma pergunta difícil porque na hidrologia trabalhamos com níveis de risco. Quando você dimensiona um sistema você coloca na balança o risco e o custo. Obviamente que risco zero significa custo infinito, então é impossível fazer. Economias mais sólidas podem correr menos riscos porque têm mais recursos financeiros para executar suas obras. No caso que estamos passando foi feito um dimensionamento com base num conjunto de informações de dados de uma série que chamamos de histórica. O que está acontecendo é que estamos tendo uma percepção ainda não totalmente confirmada de que essa série histórica não é estacionária, ou seja, ela tem altos e baixos, mas ela tem uma média que não muda com o tempo. O que temos observado nos últimos dez anos é que essas séries estão dando uma impressão de que não são estacionárias, de que o regime de chuva pode estar mudando. A observação que tivemos nesse ano hidrológico 2013/2014, é que tivemos uma afluência muito abaixo do esperado, então estamos numa situação hidrologicamente anômala. Não sei dizer se tivéssemos um reservatório muito maior que o Cantareira se teria resolvido o problema. É a maior crise da história. Nunca aconteceu nada semelhante. Se olhar os reservatórios do Sudeste, estão num regime de queda, que é um sinal de que algo importante está acontecendo. Não estou dizendo que vai acabar a chuva, não sou profeta do apocalipse. Mas os estudos hidrológicos tem que merecer uma atenção especial dos cientistas, técnicos e engenheiros.
Terra: Os governos insistem em dizer que a culpa é do clima. É mesmo só do clima?
Benedito Braga: A hidrologia está estranha. Ficamos dez anos com chuvas baixas, aí vem uma grande inundação e de 2011 pra cá só cai. De repente pode dar uma grande inundação e depois cai. Ou seja, isso já sabíamos, que a variabilidade dos sistemas hidrológicos tende a aumentar. Teremos períodos mais longos de seca, como estamos observado, e cheias mais intensas. Como você resolve esse problema? Aumentando a sua reservação. Tem que reservar mais água. Porque quando vem a enchente você acumula aquela água. O Cantareira não adianta aumentar porque foi até grande demais. Mas tem que aumentar a reservação em todos os lugares que você puder. Além disso, há na cultura do Sudeste e do Sul, de abundância de água e uso não parcimonioso. Isso está na nossa população, a ideia de que nunca vai faltar água. Isso contribui numa situação extrema. O fator climático é o principal. E uma terceira coisa é que planos de recursos hídricos na região já indicavam que um conjunto de obras tinha que ser feito. No meu ponto de vista, há um problema no Brasil no tema ecologia. A constituição diz que todos têm direitos, mas ninguém pensou nos deveres. Cria-se um conjunto de instituições e leis para preservar o meio ambiente e criou-se um emaranhado no sentido de preservar a natureza, mas o resultado prático operacional é complicadíssimo. O projeto que a implantação nos EUA ou Alemanha levaria um ou dois anos, aqui levam dez, porque depois que se decide tudo, com todas as licenças, vem o Ministério Público e diz ‘Espera, vocês falharam aqui’. Então para a obra por não sei quanto tempo. Fora quando não muda de governante. Isso precisa mudar. Existiam as leis trabalhistas e criou-se a CLT, então precisamos ter a CLA, a Consolidação das Leis Ambientais para dar mais operacionalidade e de fato conservar o meio ambiente. Precisa ser sim ou não no prazo de no máximo 1 ano. Precisamos de um sistema de infraestrutura hídrica que não dependa tanto de uma complexidade para implementação. Precisa ter coragem.
Terra: Mas já não se sabia que isso iria acontecer, já que não é uma mudança climática recente?
Benedito Braga: Não se sabia que isso iria acontecer. Sabíamos que teríamos problema, mas o tamanho do problema é maior do que a gente imaginava. É o que eu disse há quatro anos, falei que para ficar atento que iria faltar água em São Paulo. Porque uma série de infraestruturas que já tinham que ter começado a ser feitas não estavam sendo feitas. Como essa obra do Paraíba do Sul. Essa obra já está prevista em planos da Sabesp em 2008. O motivo que não foi feita eu não sei. Sou apenas um professor da USP. Problemas complexos e grandes têm sempre uma solução simples e barata. Não tem solução simples pra esse problema, nem barata. É como as enchentes de São Paulo. Imaginar que vamos resolver isso com R$ 10 milhões. Nunca. Vai chegar ao bilhão. A cidade cresceu além do seu limite sustentável e hoje paga-se esse preço, além de consumir de forma inadequada e a dificuldade de se fazer obra. A curto prazo não tem nenhuma obra, não há o que fazer. E a longo prazo é a obra do Parnaíba do Sul. Além disso, tem um projeto da década de 70, que era trazer água do rio Juquiá, o rio mais caudaloso do Vale do Ribeira. É uma obra vultosa. Mas traria uma quantidade enorme de água para São Paulo, e muito cara. Talvez valesse até a pena revisitar esse projeto que tinha um conceito para viabilizar economicamente uma usina hidrelétrica reversível. Chego a sugerir que esse projeto fosse revisitado em função dessa situação anômala. Se essa variabilidade vai aumentar, vai acontecer de novo e não dá para estar preparados com soluções pequenas.
Terra: Por que já não tínhamos bombas para usar o volume morto?
Benedito Braga: Não era preciso. A captação da água para trazer para São Paulo é por túneis. A água vem por gravidade e é coletada em diferentes profundidades. Quando se projeta um reservatório, existe o volume útil, que são os 990 milhões. Quando essa água está correndo, ela fica marrom porque tem sedimento em suspenção e quando a água para, esse sedimento decanta e se deposita embaixo. O volume morto é um volume para provisionar um espaço para os sedimentos. Ele é morto porque não posso contar com ele. Dimensiono uma obra para ela viver 50 anos. E nesse tempo imagino que esse volume vai estar perdido pelos sedimentos. Não vai ser necessário usar e nem tem como usar. Esse sedimento você pode até manter, por isso que chama volume morto. Esse volume do Cantareira não tem tanto sedimento ainda, então você tem uns 300, 400 milhões de metros cúbicos que podem ser utilizados. Tenho que colocar bombas para puxar a água. Ninguém nunca imaginou que iria usar o volume morto. São Pedro foi tão cruel com a bacia do Alto Piracicaba, Atibainha, etc, que vai ser necessário usar.
Terra: A respeito dessa polêmica do Paraíba do Sul, dá pra dizer que o Cabral ou o Alckmin está certo?
Benedito Braga: Não vou dizer quem está certo ou errado. Vou explicar. Temos o reservatório Atibainha e Igaratá e quando a barragem não tinha sido construída, o rio aumentava e diminuía a vazão dependendo da chuva. Existe uma vazão que chamamos de garantia de 95%, que está disponível no rio durante 95% do tempo. Quando não tinha esse reservatório, esse “Q95” que chamamos era de 5,8 metros cúbicos. Depois que construiu o reservatório essa vazão passou para 10 metros cúbicos. Então com a obra que são Paulo construiu num afluente do rio Paraíba do Sul, o Rio de Janeiro ganhou 4,2 metros cúbicos por segundo. Resolveu o problema de enchente e garantiu 4,2 para o Rio. Se eu fosse govenador de São Paulo teria levado essa conversa de um outro jeito. São Paulo está pegando de volta o que já deu, se quiser pensar dessa maneira. E se quiser pensar de outra maneira, 5 metros cúbicos por segundo em relação aos 130 que o Rio transfere do Paraíba para a cidade é um número insignificante. Esse reservatório foi construído com recursos do governo de São Paulo, o rio é estadual de São Paulo. A ANA não tem nada a ver com esse assunto, não sei por que vivem dizendo que a ANA tem que dar autorização. A responsabilidade dos rios do estado é do Estado. Claro que o governo de São Paulo não vai fazer isso sem se articular com a ANA, mas não perguntar se pode.
Terra: Essa interligação pode prejudicar o abastecimento do Rio de Janeiro?
Benedito Braga: Não vai prejudicar o Rio de janeiro. É um volume muito pequeno em relação ao montante. É um volume pequeno para o Rio de Janeiro, mas fundamental pra gente. Cada gota conta aqui. Não precisavam fazer nada disso, mas o governador teve uma atitude simpática e correta ao ir falar com a presidente, etc.
Terra: Além das bombas para usar o volume morto, o que mais pode ser feito para evitar que o desabastecimento aconteça desta forma?
Benedito Braga: A curto prazo não há o que fazer. Essa obra do Paraíba do Sul pode ser mais uma daquelas obras que nunca existirão por conta da legislação e das instituições. Nós hidrólogos fomos surpreendidos. Um janeiro com 10% da chuva é impensável na região sudeste. É uma situação absolutamente inédita e trágica. Não é só São Paulo, o Nordeste está numa situação mais complicada, são três anos de seca. E por que o Ceará não está com tanto problema? Porque o governo de lá investiu em sucessivos governos na infraestrutura hídrica, independente de partido politico. Houve uma continuidade no plano. Nosso Conselho Mundial esteve na ONU para que os estados membros fizessem um pacto pela segurança hídrica. É uma situação que vai para o nordeste, para Amazônia, etc, até para fora do País. Estamos batalhando para que entendam que o problema disso não é o clima, mas sim a água. Mas agora temos que fechar a torneira e rezar.