Homofobia e cadeia: histórias de quem acabou na Cracolândia
Programa “De Braços Abertos” completa um ano com o desafio de resgatar a dignidade de dependentes químicos
Alexandre Moraes Bocatto, 40 anos, pega uma garrafinha de cachaça e faz uma mistura com refrigerante de laranja. Morador da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo, ele conta que está há um mês sem usar drogas. “A abstinência é uma coisa horrível. Não uso nada, mas estou bebendo. E, sabe como é, beber com hepatite C...”
Bocatto é beneficiário do programa “Braços Abertos”, da Prefeitura de São Paulo - que completou um ano em janeiro -, e há seis meses recebe R$ 15 por dia (mais três refeições) para trabalhar como gari das 8h30 às 11h30. Ele conta que foi expulso de casa pelo pai quando tinha 20 anos de idade e, depois de algum tempo morando sozinho, se instalou na Cracolândia. “Testemunha de Jeová não aceita homossexual. Me jogaram em uma favela, arrumaram uma casa pra mim lá”, conta.
Antes de se tornar dependente, Bocatto trabalhou de ajudante-geral e balconista e chegou a cursar psicologia no Mackenzie. Conhecido como Madonna, ele é fã da cantora e foi ao show dela em 1993, no estádio do Morumbi, em São Paulo. Hoje na Cracolândia, ele encara o programa da prefeitura como uma oportunidade de “renovação”. “Eu progredi. É outra coisa. Eu estava morando na rua, viciado em droga, alcoolizado 24 horas por dia. Não tinha um dente na boca. É uma renovação”, diz.
Assim como outros beneficiários do “Braços Abertos”, Bocatto vive em um hotel na rua Helvétia e, recentemente, recebeu tratamento dentário. Sobre o futuro, ele diz apenas que gostaria de deixar a Cracolândia. “Estou aqui numa boa, vivendo minha vidinha. Mas não é fácil. Com 1 real, 50 centavos você fuma crack. Para uma pessoa viciada, não dá. Eu não quero isso para mim.”
Cadeia
Silvia Henrique de Souza, 28 anos, é outra beneficiária do programa. Ela conta que passou a morar na rua depois que deixou a cadeia, onde ficou dois anos presa por tráfico de drogas, até chegar à Cracolândia. “Já faz sete anos que eu não uso mais crack. Usei cocaína depois por muito tempo, mas parei. Parei antes mesmo de ficar grávida”, diz, exibindo a barriga de quase nove meses.
Silvia está de licença por causa da gravidez, mas também trabalha no serviço de varrição do “Braços Abertos”. “Esse apoio é muito bom. Para quem quer mudar de vida, é muito bom”, diz. De acordo com a prefeitura, desde o início do programa já foram realizados 242 atendimentos exclusivos para o tratamento de dependência química.
Ieda Santos Silva, 56 anos, está há quase um ano longe do crack. Ela conta que começou a usar drogas ainda criança, com oito anos de idade, e chegou a ser internada diversas vezes na antiga Febem – atual Fundação Casa. Já na Cracolândia, sem nunca ter tido um emprego fixo na vida, resolveu aceitar o trabalho de gari e depois foi selecionada com outros 15 beneficiários do programa a ter um emprego com carteira assinada. Hoje ela é contratada de uma empresa que presta serviços para a prefeitura (Guima Conseco) e recebe salário, cesta básica, vale-refeição e vale-transporte.
Embora esteja firme na proposta de se manter longe das drogas, Ieda diz que convive com o medo de uma recaída. “A minha vida mudou, mas vai mudar mais ainda quando eu tiver a minha casa. Eu preciso de entusiasmo para continuar trabalhando. Quero trabalhar para pagar a minha casa. É esse o meu objetivo.”
Vínculo afetivo
Além de oferecer trabalho, alimentação, moradia e atendimento médico, o programa “Braços Abertos” desenvolve ações que buscam aproximar os beneficiários. Na tarde de quinta-feira, por exemplo, foi realizado um chá de bebê coletivo no prédio da ONG Adesaf (Associação de Desenvolvimento Econômico e Social às Famílias), parceira da prefeitura e gestora do programa. Foi o quinto chá de bebê em um ano.
“Tem que ser um trabalho contínuo. E isso aqui é um momento de festa, onde elas conseguem pensar no bebê de uma forma prazerosa. É com ações como essa que, mesmo na recaída, eles podem se sentir fortalecidos para voltar (para o programa)”, diz Cristina Viscome, assessora técnica da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) e coordenadora de campo do “Braços Abertos”.
De acordo com a prefeitura, entre os 453 beneficiários do programa há 30 crianças, filhos de dependentes químicos. Eles moram com os pais nos sete hotéis cadastrados e são encaminhados para creches e escolas. Apesar de fazerem elogios ao programa, as mães criticam o fato de as crianças ficarem vulneráveis ao convívio com dependentes químicos nos hotéis.
“Deviam dar mais atenção para as crianças. Elas não podem brincar no corredor, com um monte de usuário. Então acabam ficando presas dentro de casa”, diz Silvia, que já mora com duas filhas. “Precisava tirar a família do meio dos usuários. Só isso que falta”, completa Janaina da Conceição Cerqueira Xavier, 34 anos, que também está grávida e mora com outros três filhos.
De acordo com Cristina Viscome, da Smads, está na pauta do projeto a resolução deste problema, bem como a oferta de implante anticoncepcional às mulheres. Também coordenam o programa as secretarias municipais de Saúde (SMS), Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), Segurança Urbana (SMSU) e Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC).