Morte de Marielle completa mil dias e não se sabe mandante
Anielle Franco fala sobre a demora das investigações e trabalho no instituto que criou para dar continuidade ao legado da irmã, assassinada em 2018
O assassinato da vereadora Marielle Franco completa nesta terça-feira, 8, mil dias. Uma das vereadoras mais votadas do Rio de Janeiro nas eleições de 2016, com mais de 45 mil votos, Marielle foi morta a tiros na noite de 14 de março de 2018, quando saía de um debate na Casa das Pretas, no centro do Rio. O carro em que ela e o motorista Anderson Gomes estavam foi emboscado no bairro do Estácio, quando seguia para a casa de Marielle.
Nascida e criada na Favela da Maré, ativista de direitos humanos, engajada na luta antirracista, nas pautas feministas e nas causas LBBTQIA+, Marielle era muito atuante na Câmara dos Vereadores em seu primeiro mandato. O crime rapidamente ganhou as manchetes em todo o mundo, não apenas por ser um ataque à democracia e às bandeiras defendidas pela parlamentar, mas também por marcar um novo patamar de atuação do crime organizado no País.
Mobilizada pela repercussão, a opinião pública passou a cobrar das autoridades a resposta para duas perguntas essenciais: quem matou Marielle e Anderson? Quem mandou matar?
A investigação conseguiu responder à primeira pergunta. O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiróz estão presos, acusados, respectivamente, de disparar a arma e de dirigir o carro que emboscou a vereadora e seu motorista. No entanto, não há resposta para a segunda pergunta. Os mandantes não foram ainda descobertos, tampouco o motivo do crime.
Atualmente, a principal linha de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio é que o crime teria sido contratado por políticos ligados à milícia - que já domina um terço da cidade - em uma vingança contra o atual deputado federal Marcelo Freixo, um dos principais nomes do PSOL. Marielle trabalhou durante uma década no gabinete de Freixo e era sua amiga pessoal. Há 12 anos, Freixo coordenou a CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Rio, que expôs a facção criminosa e resultou em várias prisões.
Nesta entrevista, a irmã de Marielle, Anielle Franco, fala sobre a demora das investigações e sobre o trabalho no instituto que criou para dar continuidade ao legado da irmã.
Mil dias depois do crime seguimos sem muitas respostas. Como você avalia as investigações?
O que a gente sabe é o que sai na mídia. A gente segue com esperança, claro. Mas são mil dias de um crime muito bruto e muito bem arquitetado. Mil dias de muita saudade. Esperamos que os presos (Ronnie Lessa e Élcio Queiróz) deem alguma pista sobre o mandante. Estivemos ontem (sexta-feira, 04) com as promotoras que estão à frente do caso. Elas não revelaram nenhuma novidade, mas queriam dizer que seguem trabalhando.
Toda a investigação corre em sigilo de Justiça. Mas ao longo desses mil dias, eventualmente, a imprensa revelou diversas descobertas importantes da polícia e do MP. Recentemente, foi lançado o livro "Mataram Marielle", dos jornalistas Chico Otávio e Vera Araujo, sobre os bastidores da investigação. Toda essa exposição do caso ajuda ou atrapalha?
Olha, por um lado ajuda muito, porque o caso não cai no esquecimento. Mas acho que se algumas coisas não tivessem sido divulgadas, tivessem realmente ficado em sigilo, talvez não tivesse atrapalhado uma parte da investigação, alertado determinadas pessoas. Acho que atrapalha um pouco sim.
A desembargadora Marília Castro Neves se tornou conhecida em todo o País por publicar ofensas à Marielle Franco, dias depois do assassinato. Embora tenha sido condenada a pagar uma indenização por danos morais à família, ela acaba de ser eleita integrante do Órgão Especial do TJ. Como vocês viram essa promoção?
Não nos surpreendeu muito. Vivemos em um país que, neste momento, quanto mais sem escrúpulos você for, mais alto é o cargo que você ocupa. Nem comentei nada, nem postei nada sobre esse assunto porque eu não quero dar palanque. Uma mulher que fala o que ela falou (logo depois do crime, a desembargadora postou que Marielle tinha sido eleita pelo tráfico), que esteve cara a cara com a minha mãe, e nem pediu desculpas. Prefiro ignorar essa pessoa, não quero perder tempo com isso.
Vamos falar então sobre o Instituto Marielle, criado por você para dar continuidade ao legado de sua irmã e apoiar mulheres na política. Como estão os trabalhos no instituto com a pandemia?
O instituto surgiu em 2019, a partir desse assassinato brutal. Originalmente a ideia era fazer um pré-vestibular, mas acabou se tornando algo maior, mais amplo. Começamos 2020 a todo o vapor, mas com a pandemia, acabamos nos voltando para ações voltadas às pessoas mais atingidas pela doença, distribuição de cestas básicas. Agora tivemos a primeira eleição municipal desde o crime, então estamos seguindo os nossos lemas de lutar por justiça, defender a memória, regar a semente e divulgar o legado.
Nesta eleição foi maior o número de mulheres eleitas e de mulheres negras. Mesmo assim ainda é pouco...
Sim, o sonho da Mari era ter 50% de mulheres na política; ainda estamos longe disso.
O Brasil é o País em que mais se mata pessoas trans e travestis, é um recordista na violência contra a mulher - a cada duas horas, uma mulher é assassinada, 68% delas negras. Estas eram bandeiras de Marielle e seguem com o instituto?
Com certeza. Muita gente, ao criticar a criação do instituto, diz que defendemos bandidos. Esse é um mito ainda muito presente no Brasil, de que direitos humanos é sobre defender bandido. Direitos humanos não tem a ver com ser de esquerda ou de direita. É um dever e um direito de todos. E o instituto não é vinculado ao PSOL nem a nenhum outro partido. Olha, hoje não tem ninguém na política como a minha irmã, fazendo política com afeto. Não só na câmara, mas fora de lá também. Direitos humanos não são apenas da boca para fora.