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Na pandemia, 1/3 das famílias com crianças e jovens do Brasil comeu mais industrializados

Pesquisa do Unicef aponta que 1/5 dos adultos não conseguiu comprar mais alimento em algum momento da quarentena

25 ago 2020 - 14h42
(atualizado em 1/10/2020 às 10h03)
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Na pandemia, um em cada cinco adultos não teve dinheiro para comprar mais comida quando o alimento de casa acabou, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), feita pelo Ibope e divulgada nesta terça-feira, 25. O estudo mede impactos da covid-19 em crianças e adolescentes, em três aspectos: segurança alimentar, renda familiar e acesso à educação.

Enquanto 49% dos brasileiros relataram ter mudado hábitos alimentares na quarentena, o índice entre famílias com crianças ou adolescentes chega a 59%. O grupo (famílias com jovens e crianças) também é o que apresenta o maior aumento no consumo de alimentos industrializados (31% dos entrevistados), como macarrão instantâneo, biscoitos recheados e enlatados; de fast-food (20% dos entrevistados), como hambúrgueres, esfihas etc.; e refrigerantes (19% dos entrevistados).

Essas famílias também são as que mais relatam insegurança alimentar na pandemia. Dentre elas, 27% afirmaram ter passado por pelo menos um momento em que os alimentos acabaram e não tiveram como repor, enquanto 8% deixaram de fazer alguma refeição por falta de dinheiro. Para os núcleos familiares sem criança ou adolescentes, esses índices foram de 17% e 4%, respectivamente. A pesquisa envolveu 1.516 entrevistas com adultos, feitas por telefone entre junho e julho.

"A má nutrição é apresentada em duas dimensões: a mudança de hábitos alimentares e a redução do acesso a alimentos, a fome. São duas situações extremamente preocupantes", afirma Cristina Albuquerque, chefe de saúde do Unicef no Brasil. Ela observa que o aumento no consumo de comidas processadas leva a uma dieta com poucos nutrientes, rica em sódio e gordura, o que pode acarretar aumento da obesidade infantil.

"A gente precisa fazer um nexo entre esses 9% que foram privados de alimento com relação à redução da renda nessas famílias", aponta Cristina. Conforme a pesquisa, ao menos 63% dos brasileiros que têm uma criança ou adolescente em casa tiveram queda no rendimento familiar após o início da pandemia. Desses, 21% estavam trabalhando antes da covid-19 e não estão mais.

Os motivos mais citados para diminuição de renda no grupo foram a redução do salário e do horário de trabalho de alguém da família; a suspensão do emprego, mesmo que temporária; e a impossibilidade de trabalhar, por falta de transporte ou adoecimento. Ainda dentre as famílias com crianças e adolescentes, 37% tiveram perda de pelo menos metade da renda.

"Precisamos pensar também em ajustar os programas de assistência com base nas famílias com crianças e adolescentes. O Brasil tem ampla experiência em proteção social e o benefício emergencial mostrou que isso é possível de ser feito. Principalmente em longo prazo, porque essa crise não vai terminar tão cedo", explica Liliana Chopitea, chefe da área de Políticas Sociais, Monitoramento e Avaliação, e Cooperação Sul-Sul do Unicef no Brasil

A pesquisa mostra que 18% dos que responderam vivem com crianças e adolescentes e complementa a renda com o Bolsa Família e outros 22% recebem algum tipo de benefício do governo. Ainda assim, Cristina aponta que a suspensão das aulas presenciais foi decisiva para a insegurança familiar dessas famílias, uma vez que muitas crianças e adolescentes dependem da merenda escolar. "A gente sabe que ainda existem crianças que vão à escola principalmente para terem acesso a alimentos."

Mudança nos hábitos alimentares pode causar ciclo vicioso

A mudança de hábitos alimentares em famílias com crianças e adolescentes é uma tendência observada em todas as classes econômicas, mas que atinge de forma diferente esses grupos. Para Cristina, é seguro afirmar que o aumento de 31% no consumo de alimentos idustrializados é predominante entre as classes D e E, por doerem menos no bolso. "Quando você vê redução dramática de renda em famílias mais vulneráveis, o item mais básico que pode sofrer impacto direto é a comida. Esses alimentos ultraprocessados são, em geral, mais baratos porque são pobres em nutrientes, cheios de açúcar, conservantes, aditivantes e outras coisas que realçam o sabor. O macarrão com salsicha, por exemplo, não é um alimento de verdade, mas sacia a fome das pessoas."

Já entre a parcela de 20% dos entrevistados que declarou aumento no consumo de comidas por delivery ou fast-food estaria mais relacionado às classes A e B, o que indica também mudança comportamental provocada pela pandemia. "A gente percebe um aumento desse consumo entre quem passa mais tempo em casa, porém o trabalho home office ou o próprio fator emocional gera esse distanciamento do ato de cozinhar, e então as pessoas querem coisas mais práticas, como o delivery", afirma Luanna Caramalac, especialista em Nutrição Comportamental.

Apesar da distinção entre os dois hábitos de consumo, Cristina alerta para uma possível geração de adultos e jovens com problemas de obesidade. "Vemos um novo problema de má nutrição, que já despontava. Essa mudança cultural no consumo de alimentos contribuiu ao longo dos últimos 40 anos para o desenvolvimento de gerações cada vez mais com sobrepeso."

Além da obesidade, o consumo excessivo de alimentos industrializados pode levar a uma série de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e complicações cardiovasculares, ou até mesmo um ciclo vicioso de comportamento autodestrutivo. "Quando tempos um consumo maior de produtos processados, que não são alimentos de verdade, isso gera uma inflamação sistêmica e pode atrapalhar a produção dos neurotransmissores que são responsáveis pelo bem estar e pela nossa sensação de felicidade", observa Luanna.

A saída, aponta, é manter um equilíbrio na dieta e saber quais os alimentos que realmente valem a pena. Para Cristina, entretanto, há ainda um desafio maior para que a subnutrição gerada pela pandemia seja superada: "Para muitas crianças e adolescentes em áreas extremamente vulneráveis, a pouca refeição que eles conseguem é a merenda escolar", diz.

"O Brasil tem uma política nacional de nutrição e alimentação muito boa, mas me parece que vamos ter que lidar com o agravamento de algumas situações, como a mudança de hábitos alimentares e outras crianças que podem estar desenvolvendo subnutrição", observa Cristina, frisando que a uma alimentação rica em nutrientes é essencial para o desenvolvimento do cerébro infantil. "Não ter comida na mesa não é um problema que pode ser resolvido daqui a seis meses. Essa é uma agenda que não vai passar com a vacina."

Perda de vínculo de jovens e escola preocupa

Em relação ao acesso à educação remota imposta pela pandemia, a Unicef classifica como uma "surpresa positiva" o dado de que 91% dos alunos entre 4 e 17 anos mantiveram suas atividades. Ao mesmo tempo, a organização alerta que 4,2 milhões de crianças e adolescentes não estavam matriculados mesmo antes da pandemia, enquanto outros 6 milhões afirmaram não ter mantido as atividades escolares pela internet.

"As escolas foram fechadas abruptamente e demorou um pouco para que o tempo com as famílias fosse organizado no novo contexto, mas os percentuais vêm aumentando", explica Ítalo Dutra, chefe de Educação do UNICEF no Brasil. Ele afirma ainda que a possível perda de vínculo entre os estudantes e as escolas é também uma das grandes preocupações no contexto da pandemia. "É importante entender que esse contato com a escola é parte fundamental da segurança social, seja de violência, saúde alimentar ou outros problemas."

Estadão
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