Quarentena é menor em bairros de classe média alta em SP
Vila Nova Conceição e Alto da Boa Vista têm menos de 40% em quarentena; Marsilac e Paralheiros mantêm mais pessoas em casa
O índice é definido com base em vários bancos de dados. Um deles é a movimentação de pessoas captada pelas antenas de telefonia celular dentro de regiões específicas do Estado de São Paulo. As operadoras Tim, Claro, Vivo e Oi enviam as informações ao governo, que os consolida e divulga. Quando a pessoa se afasta 200 metros da residência, o levantamento considera que ela rompeu o isolamento. A análise, feita pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), não faz distinção entre idas ao supermercado ou ao trabalho, por exemplo. Os dados avaliam apenas movimentação do celular. Se alguém sair sem o aparelho, os dados são não computados.
O Estado visitou a Vila Nova Conceição e Parelheiros. Nesta quinta-feira, 23, a praça Cidade de Milão, na Vila Nova Conceição, estava bem movimentada pela manhã. Pessoas praticavam caminhada e corrida - com e sem máscara -, e um grupo grande de adolescentes tentava adestrar seus cães. Parecia um dia de final de semana. Os espaços disponíveis para a incorporação de novos empreendimentos residenciais torna o preço do metro quadrado do bairro um dos mais caros da região.
Obviamente não são apenas os praticantes de esporte de colocam a região na 'rabeira' da quarentena. Bairro bastante residencial e com imóveis de alto padrão, o local se caracteriza pela grande presença de trabalhadores das áreas de segurança e limpeza. São profissionais que se deslocam de outras regiões para o local de trabalho. Essa migração influencia diretamente nos índices. Um dos trabalhadores da segurança é Antonio Ribeiro, que atua em um imóvel na rua Breno Brandão. Ele mora na cidade Tiradentes, zona leste, e tem ido trabalhar todo dia. "Muita gente trabalha aqui e não tem condições de fazer home office. Os ônibus ficam cheios de manhã.".
Distante 34 quilômetros da praça limpa e monitorada pela Guarda-Civil Metropolitana, o bairro de Parelheiros é o vice-campeão em isolamento na cidade. As ruas não estão totalmente desertas, mas o trânsito caiu pela metade, dizem moradores. Na rua Reimberg Christe, por exemplo, três grandes lojas de roupa permanecem de portas fechadas, respeitando a quarentena. Alguns estabelecimentos insistiam em furar a quarentena e abriam só metade da porta, como uma esmalteria na rua Angelo Catelani. A vendedora não quis dar entrevistas.
A empregada doméstica Cátia Pereira explica que os moradores ficaram assustados na última semana quando viram que o Hospital Municipal de Parelheiros estava com 100% dos leitos de UTI ocupados. "As pessoas estavam saindo para as ruas normalmente, mas começaram a voltar para casa", conta. Na semana passada, agentes de saúde foram às ruas apelar para as pessoas ficassem em casa. Com um alto-falante, uma enfermeira da unidade de saúde do Jardim Campinas falava de dois óbitos, três casos confirmados e mais 67 casos em análise em Parelheiros.
O virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, explica que o distanciamento social busca reduzir contatos entre as pessoas para diminuir o risco de contaminação pela covid-19 e o crescimento exponencial dos casos. "Uma pessoa em incubação, doente ou já em alta, pode transmitir o vírus para outras duas ou três. O período entre um caso e outro em pessoas diferentes é de quatro dias. Assim, manter as pessoas isoladas impede o contágio para outras de modo comprovado. Além disso, evita um número de casos clínicos concentrados, o que poderia saturar hospitais."
Desde 16 de março o Estado vem anunciando medidas restritivas à circulação de pessoas, com o objetivo de incentivar o isolamento social e, assim, conter o avanço do surto. Segundo o governo paulista, a taxa de isolamento no Estado inteiro foi de 57%, nesta terça-feira, 2. O porcentual ideal, de acordo com o governo, é de 70% a partir de pesquisas do Instituto Butantan e da Universidade de Brasília.
Julio Croda, infectologista, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fiocruz, afirma que está finalizando estudo que envolve USP, Universidade de Oxford (Inglaterra) e a Universidade de Stanford (EUA) sobre o nível de isolamento necessário para reduzir o número de contágios e infectados. "Vamos mostrar alguns indicadores interessantes para tentar avançar nessa questão de isolar 40%, 50% ou 60% e discutir os melhores hábitos para diminuição de contágio. Será um artigo importante", afirma o especialista, que deixou o Ministério da Saúde no fim de março após divergências com a gestão Jair Bolsonaro.
Os índices de isolamento social têm relação com o número de óbitos por região, mas com uma espécie de "efeito retardado". Especialistas explicam que a queda no índice de isolamento social implica na transmissão mais acelerada do vírus. O período entre uma eventual mudança no isolamento social e o aumento do número de mortes é de duas semanas. Não é possível comparar as mortes de hoje com o isolamento social do mesmo período. "As pessoas que morreram hoje podem ter sido infectadas duas ou três semanas atrás. É preciso somar o período de incubação ao período de doença e morte", explica Paulo Brandão.
Monitoramento tecnológico têm limitações, dizem especialistas
"Não há precedente na história de uma pandemia abordada a partir desse tipo de tecnologia. É diferente quando os epidemiologistas usam a epidemia passada para tentar entender a epidemia presente. Em 2009, tivemos a H1N1, mas os celulares não foram utilizados. Estamos pesquisando, mas não dá para olhar o dado histórico e assumir que isso vai funcionar agora", afirma Helder Nakaya, professor de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
Fernando Reinach, especialista em Biologia Molecular e colunista do Estado, destaca a limitação do uso do celular para detectar a movimentação. "Se saio de Atibaia e vou a São Paulo e fico três dias sozinho no apartamento, não rompi meu isolamento. Não encontrei ninguém. O celular provavelmente vai identificar esse deslocamento", explica. "Se for de ônibus, terei contato com várias pessoas, mas o celular vai registrar o mesmo deslocamento".
"Esses números aparentemente surpreendem, pois em geral se faz uma leitura superficial e, por vezes, até preconceituosa da distribuição da população pela cidade. Para ser melhor compreendido, esse número precisaria ser cruzado com dados etários, ocupação da população nas áreas e também o nível de emprego", diz Valter Caldana, professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie.
3 perguntas para Fernando Reinach
O que é isolamento social?
Dentro dos modelos de epidemiologia, você precisa chegar perto de uma pessoa, respirar e tossir para ter a contaminação. É preciso somar as interações ao longo do dia: as oportunidades de passar o vírus de um para outro. Suponhamos que o total dessas interações seja 100. Quando falamos de isolamento social de 70%, significa que o número de 100 interações tem de passar para 30. É o modelo epidemiológico de isolamento. Se a pessoa tem 100 chances de receber o vírus no dia, essa chance tem de passar para 30. É um conceito baseado na biologia do vírus.
Por que o número de 70%?
No modelo, os pesquisadores vão mudando o número de acordo com a quantidade de casos. Começam com 100%, aí temos o pico absurdo e vão reduzindo. Com isso, a curva de casos começa ficar mais achatada. Por isso o isolamento social funciona. Diminui o número de oportunidades de o vírus passar de uma pessoa para outra.
Qual é a relação entre isolamento social, número de infectados e de óbitos em um bairro?
Quando diminui o número de interações com outras pessoas, o vírus tem mais dificuldade de espalhar. Tem menos chance de passar de um para outro. Com isso, vai diminuir o número de casos. Com menos casos, temos menos casos graves e, com isso, menos mortes. É um raciocínio simples. Mas é difícil medir isso, medir os que os epidemiologistas fazem. É possível chegar próximo.