Quilombo Rio dos Macacos vive "tortura de mais de 50 anos", diz mulher que implorou ajuda a Lula
Rose Meire Silva, de 44 anos, faz apelo pela garantia de direitos básicos aos moradores da comunidade
A imagem de Rose Meire Silva de joelhos marcou a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Salvador, na quinta-feira, 12. Emocionada, Rose Meire gritou: "Nosso povo está morrendo." Nas redes sociais, o vídeo viralizou, por vezes sendo compartilhado sem contexto - algumas pessoas creditavam a fala da mulher ao aumento da fome durante a pandemia de covid-19. Mas a dor de Rose Meire vem de muito antes disso. "Tem uma tortura de mais de 50 anos. Não é a primeira vez que a gente pede socorro a um presidente", afirmou, em entrevista ao Terra.
Rose Meire é moradora do Quilombo Rio dos Macacos, comunidade que, segundo o Mapa de Conflitos, iniciativa da Fiocruz, existe há mais de 200 anos e desde 1960 vive em disputa com a Marinha do Brasil. Naquele ano, a Prefeitura de Salvador doou terras públicas à Marinha para a construção da Base Naval de Aratu.
"Desde então, ele [o Quilombo] passa a ser alvo de ações de reintegração de posse propostas pela Procuradoria Geral da União (PGU) na Bahia, a qual reivindica a desocupação do local para atender à necessidade de expansão da vila residencial militar na Praia de Inema", diz o portal do Mapa de Conflitos.
Para além das disputas judiciais sobre a terra, Rose Meire destaca que na comunidade não chegam serviços básicos. Aos 44 anos, ela tem na memória cenas de repreensão quando era criança e tentava pegar água no rio que corta o território. "A Marinha sempre mostrou que os pretos não podem chegar na beirada do rio. Eu já tomei porrada na beira do rio quando pequena pelos militares", afirmou.
Hoje, a situação, segundo Rose Meire, está ainda pior. "Tem uma parte da comunidade que eles [os militares] conseguiram levantar um pedaço do muro. Eles têm um projeto para murar o rio, para os netos, bisnetos dos escravos, não ter acesso à água."
Ao Terra, a Marinha do Brasil (MB) disse que não se opõe à circulação dos moradores da comunidade pelo território e afirma que não há registros de conflitos recentes entre os quilombolas e os militares.
"Em julho de 2020, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu o processo demarcatório e titulou a área quilombola. Contudo, o principal acesso à comunidade permanece sendo através da área militar. Nesse contexto, a MB sempre permitiu, como ainda permite, a passagem regular dos moradores, de seus convidados, visitantes e de qualquer membro dos órgãos governamentais", diz a Marinha em nota.
"Atualmente, encontra-se em andamento, sob a responsabilidade do governo do Estado da Bahia, a construção de estradas de acesso independente à comunidade, o que possibilitará ou aprimorará a efetivação de políticas públicas. Ressalta-se, ainda, que a MB nunca se opôs à implementação de serviços públicos de qualquer natureza", diz outro trecho do comunicado. Confira o texto completo ao final da reportagem.
Documento assinado por Lula
No perfil do Quilombo Rio dos Macacos em uma rede social, foram compartilhadas imagens do documento que o presidente Lula assinou após o pedido de Rose Meire. Nele, estavam listadas diversas demandas dos quilombolas.
Além do acesso à água, Rose Meire pede celeridade para construção de uma via de acesso ao quilombo sem que seja necessário passar pelos portões da Marinha. "Precisamos para o transporte escolar subir, a Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) subir, porque a gente já teve negação de socorro, da Samu não pegar o jovem, e o jovem sair só na gaveta, morto", enfatizou a mulher.
Em síntese, Rose Meire esclareceu que espera que as políticas públicas cheguem à comunidade. A expectativa, depois do encontro emocionado com o presidente, é de que "alguém da Secretaria da Presidência entre em contato com a comunidade para a gente marcar uma reunião".
Confira a nota da Marinha na íntegra:
"A Marinha do Brasil (MB), por meio do Comando do 2º Distrito Naval (Com2oDN), sobre o assunto Comunidade Quilombola Rio dos Macacos, esclarece que, recentemente, foi estabelecido um procedimento conciliatório na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF), buscando solução negociada entre a MB e a Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos.
A área atribuída à MB engloba a Barragem Rio dos Macacos e é considerada de segurança nacional, por contribuir para o planejamento das atividades relacionadas ao interesse nacional e à execução de políticas definidas para a área marítima.
Em julho de 2020, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) concluiu o processo demarcatório e titulou a área quilombola. Contudo, o principal acesso à Comunidade permanece sendo através da área militar. Nesse contexto, a MB sempre permitiu, como ainda permite, a passagem regular dos moradores, de seus convidados, visitantes e de qualquer membro dos órgãos governamentais. Atualmente, encontra-se em andamento, sob a responsabilidade do governo do Estado da Bahia, a construção de estradas de acesso independente à Comunidade, o que possibilitará ou aprimorará a efetivação de políticas públicas. Ressalta-se, ainda, que a MB nunca se opôs à implementação de serviços públicos de qualquer natureza.
A MB sempre esteve pronta para dialogar com os envolvidos nos mais diversos foros, formulando, desde 2012, propostas de acordo que contemplavam, até mesmo, o oferecimento de terrenos e a construção de moradias. No entanto, somente em 2022, a Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos formalizou uma proposta com seis proposições, tendo a MB se manifestado pela viabilidade de cinco delas, estando em negociação, no âmbito da CCAF, apenas a que versa sobre o uso compartilhado da barragem localizada na região. Sobre esse ponto, é importante registrar que a barragem é fonte de água única e essencial ao funcionamento e existência de todas as Organizações Militares que se encontram na área da Base Naval de Aratu (BNA), constituindo o Complexo Naval de Aratu, onde trabalham 1.800 militares e civis.
Convém mencionar que não há registros de conflitos recentes envolvendo os moradores da Comunidade e militares da MB. Ademais, desde 2016, quando o terreno ocupado pela Comunidade foi revertido à Superintendência do Patrimônio da União (SPU) para fim de titulação quilombola, deixou a MB de administrá-lo, passando a não ter mais nenhuma ingerência sobre aquela localidade. Desde então, a atuação dos militares restringiu-se à área militar da União.
Por fim, ressalta-se que a Marinha do Brasil atua na estrita legalidade, no cumprimento das decisões judiciais, na responsabilidade social e no respeito à dignidade do ser humano."