Raptos internacionais de crianças pelos pais desafiam Justiça do Brasil, diz diplomata americana
Michelle Bernier-Toth se reuniu com membros do Judiciário e do Executivo para discutir como melhorar troca de informações e medidas previstas pela Convenção de Haia
Mesmo durante a pandemia de covid-19, casos de rapto internacional de crianças continuaram ocorrendo no mundo. Entre Brasil e Estados Unidos, os números de retornos aos países de origem após decisões da Justiça dão a medida do problema, mas também de um avanço do Judiciário brasileiro.Nos últimos dois anos, 17 crianças foram enviadas dos EUA para o Brasil. Em 2021, seis fizeram o caminho inverso, diz a conselheira Especial para Assuntos Infantis no Escritório de Assuntos Consulares dos Estados Unidos, Michelle Bernier-Toth, que ainda vê nos atrasos processuais o principal problema..
A conselheira, membro do Departamento de Estado americano, se reuniu em maio com representantes do Judiciário e do Executivo brasileiro. Na pauta dos encontros, os avanços e os desafios para o Brasil seguir o que já é regulamentado pela Convenção de Haia sobre o Sequestro Internacional de Crianças. "Era importante vir ao Brasil, especialmente porque nos últimos 16 anos, em nosso relatório anual ao Congresso, tivemos de citar o Brasil por atrasos nos processos judiciais de casos de sequestro", afirma.
Decisão recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pode acelerar esses processos, facilitando, principalmente, a troca de informações entre os judiciários dos dois países. "Quando um juiz tem um caso diante de si e está analisando a possibilidade de devolver a criança à sua residência habitual é útil para eles falar com um juiz naquele país", afirma.
Leia a seguir trechos da entrevista exclusiva ao Estadão.
Qual o motivo de sua vinda ao Brasil?
Eu me concentro em duas questões: as adoções internacionais e os sequestros internacionais de crianças por seus pais. Trabalho com governos estrangeiros que precisam de incentivo para aderir às convenções de Haia sobre Adoção Internacional e sobre Sequestro Internacional, porque o escritório é a autoridade central para ambas as convenções. Ou, então, se esses governos aderiram à convenção e temos uma parceria de tratado onde vemos lacunas na implementação, (trabalhamos) para nos envolver com governos estrangeiros (e saber) sobre quais são essas lacunas e como podemos trabalhar juntos para resolvê-las.
(A viagem ao Brasil) Foi minha primeira viagem para fora dos Estados Unidos desde a pandemia. Era importante vir ao Brasil, especialmente porque nos últimos 16 anos, em nosso relatório anual ao Congresso, tivemos de citar o Brasil por atrasos nos processos judiciais de casos de sequestro.
Qual é a situação da cooperação entre Brasil e EUA em casos de rapto de crianças por um dos pais?
Temos um tratado, somos parceiros e sempre digo que uma parceria se baseia na confiança, no respeito mútuo e na comunicação. Temos esses elementos dentro da nossa parceria com o Brasil. Mas onde vemos desafios é novamente nos atrasos judiciais dos processos. Isso não é exclusivo do Brasil. Tive as mesmas conversas na Argentina e tenho certeza que terei o mesmo tipo de conversas em outros lugares. Nos últimos dois anos, devolvemos 17 crianças ao Brasil sob a convenção. Mas também estamos vendo tendências positivas na direção oposta. No ano passado, tivemos seis retornos do Brasil para os Estados Unidos. Foram os primeiros retornos da convenção desde 2018. Isso é um bom indicador. Esperamos que esta seja uma tendência. Mas, novamente, em todas as minhas reuniões com autoridades brasileiras, realmente senti profundo compromisso com a implementação da convenção de modo significativo. Essas coisas levam tempo, sabemos disso.Mas estamos nos movendo na direção certa.
Como foram seus encontros com as autoridades brasileiras?
Estive com o Ministério das Relações Exteriores, com o gabinete do procurador-geral e com altos membros do judiciário. A convenção de Haia encoraja os países a identificar um ou mais juízes para servir como um recurso para seus pares. Anteriormente, o Brasil tinha um juiz. Agora são cinco, um para cada região, e um juiz coordenador. É um desenvolvimento recente, ma muito importante porque, como sabemos por nossa própria experiência nos Estados Unidos, esses juízes de ligação desempenham papel importante ao explicar a convenção a seus pares para ser um recurso para eles, mas também para facilitar comunicações judiciais diretas entre, digamos, um juiz no Brasil e um nos Estados Unidos.
Quando um magistrado tem um caso diante de si e está analisando a possibilidade de devolver a criança à sua residência habitual, é útil para eles falar com um juiz naquele país para entender como podem ser os arranjos de custódia com uma audiência de custódia. Isso lhes dará a confiança de que podem ter o conhecimento, de que podem confiar em sua contraparte no país estrangeiro para fazer a coisa certa. E esses são todos os elementos dentro da Convenção de Haia que os juízes de ligação podem ajudar. Faz uma grande diferença.
É possível dizer que o caso Sean Goldman se tornou o maior exemplo dos problemas entre essa relação entre os judiciários do Brasil e dos Estados Unidos?
Acho que o caso Sean Goldman realmente destacou alguns dos desafios que estávamos enfrentando. Foi um caso muito, muito complicado. Havia tantos fatores complicadores, mas acho que destacou o fato de que quanto mais esses casos se prolongam, mais complexos eles se tornam, e mais difíceis de resolver. O que ele também fez, porém, foi conscientizar os membros do Congresso dos Estados Unidos sobre esses desafios, não apenas no Brasil, é claro, mas no mundo todo, os desafios que frequentemente enfrentamos em nossas parcerias de tratados. Isso resultou em uma legislação nos Estados Unidos, o Sean and David Goldman Act, que expandiu nossos requisitos de relatórios anuais para incluir mais dados.
Recentemente tivemos uma nova decisão do CNJ que facilita a troca de informações entre os países e pode acelerar esses processos.
É um avanço para orientar os juízes, porque são casos que a maioria dos juízes nunca viu antes. Portanto, é importante que entendam quais são suas obrigações, as responsabilidades sob a convenção, de como deve operar e ter essa orientação pode ser útil para isso. Fizemos a mesma coisa porque nos Estados Unidos um caso pode ir tanto para um juiz federal quanto para um estadual. Quando um caso é levado a um magistrado, enviamos informações e facilitamos sua comunicação com nossos juízes de ligação.
Que tipo de consequências uma criança pode ter em casos de sequestro internacional e de alienação parental?
Em primeiro lugar, eles estão separados por ação unilateral de um dos pais. Em alguns casos, quando o pai a escondeu, vai de um lugar para outro, muitas vezes mudando seus nomes, mudando os nomes das crianças. É muito traumático e emocionalmente prejudicial para uma criança. Há adultos agora que foram sequestrados quando crianças que falam sobre suas experiências e como foi difícil sair disso para se recuperar de suas experiências. E acho que, na medida em que começam a falar, entendemos mais sobre o impacto.
Normalmente, os sequestros ocorrem quando o casamento ou o relacionamento entre os pais se desfez tanto que eles não conseguem concordar com o que deve ser feito. Temos o conceito de alienação parental, em que a criança é informada de que coisas negativas sobre o outro genitor, são levadas a acreditar, sabe, em coisas terríveis sobre eles. É muito prejudicial para uma criança.
Você acredita que esse tipo de casos vem da diferença de cultura?
Difícil dizer. Cada relacionamento vai ser único. Casamentos se desfazem, relacionamentos se desfazem em todos os lugares. Nesses casos é bem mais difícil entre eles. O único benefício é que internacionalmente, pelo menos, temos a Convenção de Haia, que fornece uma estrutura entre os sistemas jurídicos de diferentes países para que você tenha uma premissa simples: a criança deve ser devolvida à sua residência habitual. Há uma ponte entre os dois sistemas jurídicos e, quando funciona, funciona muito bem.