RS: 40% dos registros de racismo vão parar na Justiça
Desde o episódio de injúria racial contra o goleiro Aranha, do Santos, em partida realizada contra o Grêmio em Porto Alegre (RS), em meados de agosto, o tema da discriminação racial ganhou destaque e elevou a discussão sobre o tema no País. Mas o problema seria apenas a ponta do iceberg de um comportamento institucionalizado na sociedade brasileira. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS), de janeiro de 2012 a setembro de 2014, pouco mais de 40% dos registros de racismo ou injúria racial viram processos judiciais.
Os dados da SSP obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que foram feitos 2.285 registros de injúria racial e racismo em delegacias do Estado do Rio Grande do Sul no período citado. Desse total, 1.357 inquéritos foram encaminhados à Justiça.
Muitos dos processos não são levados adiante por diversas variantes, desde a desistência a acordos, além da possibilidade de ter de conviver com uma ação judicial morosa e complicada. Em 2012, chegaram ao segundo grau 136 processos, enquanto neste mesmo ano a Justiça recebeu 511 denúncias oriundas de investigações policiais por injúria e racismo.
Entre os processo que corriam nas esferas superiores, 64 eram cíveis - referentes a indenizações -, 41 criminais, além de 31 que tramitavam nas Turmas Recursais, onde ações mais simples e de menor valor são julgadas, mais conhecidas como Juizado de Pequenas Causas.
De acordo com servidores do judiciário responsáveis pelo monitoramento das ações, os números de processos que chegam ao Tribunal de Justiça são baixos porque já foram resolvidos na primeira instância. O Terra fez uma consulta junto ao Fórum Central de Porto Alegre, onde primeiro tramitam os processos da comarca, mas os dados não foram repassados.
Entretanto, com base nos números da segunda instância é possível dizer que os processos judiciais aumentaram 45,7% desde 2012 e os números computados até novembro de 2014 já são maiores que os do ano passado.
Já na linha de frente do registro e inquérito policial, os números mostram uma queda tanto nos registros quanto nos inquéritos remetidos à Justiça. A polícia recebeu 938 queixas em 2012, 782 em 2013, e 656 até setembro deste ano. Os inquéritos remetidos à Justiça seguiram a mesma lógica de queda: 511 (2012), 499 (2013) e 347 (2014).
De acordo com o jurista e ativista do Movimento Negro Gleidson Renato Martins Dias, existe uma dificuldade social e, consequentemente, de agentes públicos, em aceitar o racismo, “a negação do racismo... falo de pessoas de boa fé, que acreditam de verdade que não são racistas e que falar de racismo é uma certa vitimização”.
A mestre em educação, especialista em aconselhamento psicopedagógico Marilene Leal Paré afirma que o caso de racismo contra Aranha escancarou o racismo do Rio Grande do Sul para o mundo, além de dizer que “a verbalização ‘macaco’ ocorre já desde os bancos escolares com os (as) alunos (as) negros (as), está internalizada no branco brasileiro como fruto de um sistema colonial que formou esse País”.
Para ela, as estatísticas não representam a realidade, porque “se nós, negros, fôssemos registrar todos os casos de discriminação racial que sofremos diariamente, não haveria juizes suficientes para julgar, principalmente a violência simbólica por atitudes ou palavras injuriosas. Os registros não refletem a realidade do racismo em nosso País”, avalia.
Dias concorda dizendo que não é possível falar de diminuição dos casos de racismo analisando somente o que chega ao judiciário, "porque muitos casos são arquivados de forma equivocada, tanto na fase de inquérito quanto na fase processual", diz, para em seguida continuar, "pois boa parte dos servidores públicos (de policial a magistrado) carecem de uma compreensão mais específica da temática racial, temática esta que não é enfrentada nas escolas, nem nos cursos de Direito".
Marilene concorda e diz que nas delegacias as vítimas são dissuadidas de registras o Boletim de Ocorrência que dá início à investigação. "Principalmente se formos mulheres. Os juízes, na sua maioria brancos, frutos da educação colonial, dificilmente dão ganho de causa ao negro, e o povo negro sabe disso, não é ingênuo, e poderia listar muitas outras causas".
Quando a entrevista com os dois foi solicitada, o Terra pediu que relatassem se já foram vítimas de racismo alguma vez na vida. A psicopedagoga contou um caso que se repete diariamente nas portas de bancos.
"Como mulher já sofri e ainda sofro muito. O que ocorre é que utilizamos muitos mecanismos de defesa para poder sobreviver. O mais utilizado é o de negação, faz de conta que isso não está acontecendo. O caso mais recente comigo foi ao ser barrada na porta eletrônica do banco. Ao voltar para ver se ainda tinha algo de metal na bolsa, o guarda deixou passar uma mulher loira depois de mim para quem o sinal eletrônico também havia buzinado. E foi na agência na qual sou cliente há 25 anos! O racismo no Rio Grande do Sul não é tão casa-grande e senzala que nem no Norte e Nordeste do País. É mais ligado à colonização alemã e italiana. Fui palestrar em Bento Gonçalves e num restaurante renomado não quiseram me servir. Há locais em que me sinto constrangida pelos olhares por eu ser a única negra no espaço", conta.